segunda-feira, 30 de setembro de 2013

NOTA TÉCNICA SOBRE USO DO NOME SOCIAL EM ESCOLAS E UNIVERSIDADES


Ementa:
A controvérsia diz sobre a possibilidade de os alunos menores de idade
utilizarem o nome social, sem haver a necessidade de autorização dos pais
ou responsáveis.
A Comissão Especial da Diversidade Sexual do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
no exercício de suas atribuições institucionais, à
unanimidade, deliberou pela expedição da presente nota
técnica, por solicitação da Comissão da Diversidade
Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB-BA, em
face da audiência pública convocada pelo Conselho
Estadual de Educação do Estado da Bahia sobre a
resolução que obriga escolas públicas e particulares,
bem como universidades estaduais, à utilização do
nome social de seus discentes nos documentos
internos.
Engessar uma pessoa em condição não equivalente a sua identidade de gênero
é deslocar-se na contramão da genuína ideia de justiça, deixando de oferecer a
todos o que é seu por direito, limitando suas realizações e a busca da
felicidade.1
A aversão da sociedade à pluralidade de expressões de gênero e da
sexualidade atinge muito mais as pessoas trans2
. Deste grupo, por terem maior
1 Neste sentido, consultar SANCHES, Patricia Corrêa. “Mudança de nome e da identidade de
gênero”, em Diversidade sexual e direito homoafetivo/ Maria Berenice Dias (Coord.). São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, pp. 425-444, 2011, p. 440.
2 A escolha do termo “pessoa trans” justiça-se por ser este o mais bem aceito, na atualidade,
pelos pesquisadores de gênero e sexualidade, inclueindo todos aqueles cuja expressão de
gênero esteja de algum modo em trânsito ou diverso do sexo anatômico.visibilidade, as travestis são mais rechaçadas pela família. São expulsas de seus
lares e lançadas literalmente à sarjeta. Também são alvo mais fácil do bullying
escolar e mais difícil de serem absorvidas no mercado de trabalho. Não por
acaso, acabam sendo sempre ligadas à prostituição. Além das travestis, no
mesmo “guarda-chuva” de transidentidades estão as transsexuais e
intersexuais3
.

Neste cenário a adoção de políticas públicas educacionais pode melhorar o
ambiente social para estudantes, contemplando em especial as pessoas trans.
4
A fim de evitar que o ambiente educacional se torne mais um reduto de
preconceito e fobia às identidades de gênero dessa população infanto-juvenil,
uma das medidas para reduzir as altas taxas de êxodo escolar é a possibilidade
de adoção do uso do nome social.
Porém, para a adoção do nome social nos registros escolares, não há a
necessidade de prévia autorização dos pais ou responsáveis, até porque,
usualmente, eles são os que primeiro rechaçam essa condição do filho.
Tal direito tem amplo respaldo no 227 da Constituição Federal,
5
bem como em
vários dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que buscam dar
efetividade aos princípio da proteção integral.
6
3 De acordo com a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), drag queens e drag kings
não fazem parte das transidentidades.
4 No mesmo sentido, veja BLACK, Whitney W.; FEDEWA, Alicia L.; GONZALEZ, KIRSTEN A.
“Effects of “Safe School” Programs and Policies on the Social Climate for Sexual-Minority Youth:
A Review of the Literature”, em Journal of LGBT Youth, vol. 9, n. 4, Oct. NY: Routledge, pp. 321-
339, 2012, pp. 321-322.
5 CF, art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
6 ECA, art. 3ª: a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade.

ECA art. 4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Indispensável trazer também os Princípios de Yogyakarta – Carta de Princípios
sobre a aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à
orientação sexual e identidade de gênero – que impõe ao Estado (Princípio 16):
Adoptarán todas las medidas legislativas, administrativas y
de otra índole que sean necesarias a fin de garantizar el
acceso a la educación en igualdad de condiciones y El trato
igualitario de estudiantes, personal y docentes dentro del
sistema educativo, sin discriminación por motivos de
orientación sexual o identidad de género;
Diante de tais regras, cujo rol não é taxativo tendo em vista a existência de
diversos outros dispositivos nacionais e internacionais, dos quais o Brasil é
signatário, é possível fundamentar, com robusta certeza, a possibilidade do uso
do nome social nos registros escolares e universitários, independente da
anuência dos pais.
Afinal, é dever do Estado assegurar tanto o respeito à identidade de gênero
como o livre desenvolvimento da personalidade das crianças e adolescentes
trans, garantindo-lhes acesso à educação, sem discriminação. E mais. Quando
falha a família no seu dever de respeitar a liberdade e dignidade de seus
integrantes, cabe ao poder público avocar esse múnus e fazer valer os ditames
constitucionais, em especial o princípio máximo do melhor interesse da criança e
do adolescente, mesmo que contra a vontade dos genitores ou responsáveis.
E nem se pode alegar que a dispensa de consentimento violaria o poder familiar.
O art. 1.634, do Código Civil atribui aos pais, quanto à pessoa dos filhos
menores: Inc. I – dirigir-lhes a criação e educação. Ora, se os pais repudiam a
a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas
humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais
garantidos na Constituição e nas leis.
ECA art. 5º: nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer
atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais
ECA, art. 15: A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como
pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e
sociais garantidos na Constituição e nas leis.
ECA, art. 17: O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e
moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da
autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
ECA, art. 18: É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.natureza sexual de seus filhos, de modo que isso lhes crie óbices ou
constrangimentos na instituição de ensino que frequentem, por consequência
estão falhando no cumprimento de um dos elementos mais importantes do
conteúdo do poder familiar.
Ainda assim, se a necessidade de consentimento fosse vislumbrada como um
direito dos pais de vigilância, oriundo do poder familiar, estar-se-ia diante de um
clássico exemplo de colisão entre direitos e deveres fundamentais dos pais e
dos filhos. Ter-se-ia um conflito entre o dever de vigilância versus a intimidade e
a liberdade da prole. A intimidade, acompanhada da vida privada, materializa-se
em um espaço pessoal, onde não se comporta qualquer interferência externa. E
também é sinônimo de autonomia, ou seja, a possibilidade de cada um viver a
própria vida, da forma como desejar ou lhe for conveniente.
7
Além disso, a supressão da liberdade de utilizar o nome social não estaria de
acordo com o melhor interesse da criança assegurada, com prioridade absoluta,
em sede constitucional. Assim, em uma eventual ponderação, deve prevalecer a
possibilidade da adoção do nome social.
Cabe ser tomada como precedente a Resolução CEE/CP nº 5, de 03/04/2009,
do Conselho Estadual de Educação de Goiás, que determina às escolas do
sistema educativo, em respeito à cidadania, aos direitos humanos, à
diversidade, ao pluralismo, à dignidade humana, incluam o nome social de
travestis e transexuais nos registros escolares para garantir o acesso, a
permanência e o êxito desses cidadãos no processo de escolarização e de
aprendizagem (art. 1º). O § 2º estabelece que o discente travesti ou transexual
deve tão somente manifestar, por escrito, seu interesse na utilização do nome
social, no ato de sua matrícula ou ao longo do ano letivo, sem mencionar
qualquer necessidade de prévia autorização dos pais ou responsáveis.
Esta é a diretriz do Projeto do Estatuto da Diversidade Sexual, elaborado pela
OAB, e que está colhendo assinaturas para ser apresentado ao Congresso
Nacional por inciativa popular. 8
O momento atual é de consagração do livre desenvolvimento da personalidade,
de proteção absoluta à dignidade humana e de promoção do direito fundamental à
felicidade de todos, em especial crianças e adolescentes. Só tendo um acesso
7 Como afirma TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 204-205.
8
Texto e adesões: www.estatutodiversidadesexual.com.brdigno, justo e igualitário a mecanismos que proporcionem a adequação da
identidade jurídica à física é que as pessoas trans poderão gozar do status de
igualdade, almejado por todos.
Portanto, é absolutamente DISPENSÁVEL a autorização dos pais da criança ou
do adolescente que desejem utilizar o nome social em documentos internos da
sua instituição de ensino, bastando apenas que expresse de forma irrefutável
esse desígnio.
Brasília, 27 de setembro de 2013.
MARIA BERENICE DIAS
Presidenta da Comissão Especial de Diversidade Sexual do
Conselho Federal da OAB
MARIANNA DE ALMEIDA CHAVES PEREIRA LIMA
Membro-consultor da Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho
Federal da OAB
FILIPE DE CAMPOS GARBELOTTO
Membro da Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho Federal da
OAB

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