domingo, 24 de março de 2013

OS DESAFIOS JURÍDICOS NA PROTEÇÃO DOS TRANSEXUAIS




Amália Formica (01)

1. Introdução

Uma nação que possui como objetivos fundamentais constituir uma sociedade livre e justa e sem quaisquer formas de discriminação, não pode deixar de tutelar o direito à redesignação sexual, pois as normas devem estar em consonância com os fatos e com os valores sociais. Desse modo, a transexualidade está dentre os fenômenos sociais que clamam por regulamentação e adequada atenção no plano jurídico.

De todas as variantes da sexualidade humana, a transexualidade é uma das mais incompreendidas. Esta se caracteriza pela experiência de nascer com cromossomos genitais e hormônios de um sexo, mas ter a convicção de pertencer ao gênero oposto. Assim, existem diferentes conceitos de transexualidade, porém, todos eles “têm como denominador comum a não compatibilização do sexo biológico com a identificação psicológica sexual no mesmo indivíduo”. (02)

Em síntese, os transexuais são pessoas que fenotipicamente pertencem a sexo definido, mas psicologicamente pertencem a outro e se comportam segundo este, rejeitando aquele. O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário ao de sua anatomia. Vive, se comporta e age como o sexo oposto. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação.

Para Matilde Sutter, “transexual é o indivíduo que rejeita seu sexo biológico, identificando-se com o sexo oposto, ao qual obsessivamente deseja permanecer. Rejeita qualquer tentativa de recondução ao seu sexo biológico, almejando a transformação da genitália, bem como a redesiganação do sexo”. (03)

Portanto, pode-se dizer que tal desarmonia é um problema genuinamente médico, que nada ter a ver com preferências sexuais. Enquanto homossexuais e travestis assumem os órgãos genitais que possuem, os transexuais repudiam suas genitálias, desejando veementemente a realização da cirurgia de adequação sexual. Já há muito tempo esse procedimento é realizado em hospitais. Porém, como qualquer outra cirurgia de complexidade média, a operação de adequação sexual possui um custo considerável para ser realizada, o que se constitui como óbice intransponível para a maioria dos transexuais.

2. Transexualidade e a Legislação.

2.1. Brasil

No Brasil, ainda não há legislação específica regulamentando a matéria. Contudo, a maioria dos juizes aplica a analogia e os princípios gerais do Direito (04) para solucionar os casos relativos aos transexuais. Assim, a ausência da legislação é preenchida pelos pronunciamentos jurisprudenciais. 

A Constituição fornece o aparato necessário para a dicção jurisprudencial. No artigo 1º da Magna Carta estão arrolados os fundamentos da República Federativa do Brasil. Entre eles está a dignidade da pessoa humana. No artigo 3º nota-se que um dos objetivos da nossa nação é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Outrossim, o artigo 4º apregoa que nas relações internacionais, o Brasil rege-se pela prevalência dos direitos humanos. O artigo 5º, por sua vez, preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

No tocante às operações e a realização das mesmas com o financiamento do Sistema Único de Saúde pode-se dizer que a realização delas tem amparo constitucional no princípio do direito à saúde. O art. 6º da Constituição diz que: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Desse modo, o direito à saúde é direito fundamental, que pode ser defendido no plano individual e coletivo.

O artigo 6º é complementado pelo artigo 194 que aduz que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Assim, compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base no objetivo da universalidade da cobertura e do atendimento. Assim, nenhum transexual pode se ver privado de assistência médica, muito menos de usufruir procedimento cirúrgico existente e custeado pelo Estado. Pois, como mesmo preceitua o artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Todas as pessoas têm o direito de desempenhar o papel social que desejarem e com o qual se sentem confortáveis. A identificação sexual não pode ser imposta pela sociedade, ela deve ser decida individualmente pelo cidadão, que possui o pleno direito de desempenhar o papel de gênero com o qual se identifica física e psicologicamente. O individuo não pode se sentir obrigado a desempenhar papel diverso àquele com o qual se identifica socialmente, tal situação fere o princípio da dignidade humana.

Roger Raupp Rios assevera que “a norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos” (05).

No que diz respeito à mudança do nome e do gênero dos transexuais no registro civil, os magistrados vem utilizando a analogia com o artigo 58 da lei dos registros públicos cuja redação, alterada, em 1998, pela Lei nº 9.708, passou a ser a seguinte: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.

Cabe ressaltar que, desde 1995, está em trâmite perante a câmara dos deputados, o projeto de lei nº 70-B, de autoria do Deputado José Coimbra. Esse projeto tem como objetivo a legalização das operações de redesignação sexual e a posterior mudança no registro civil.

O deputado propõe a inclusão de novo parágrafo no artigo 129 do Código Penal, com o intuito de excluir do crime de lesão corporal a cirurgia de adequação sexual. Tal modificação visa a sedimentar o entendimento de que a conduta do médico, ao realizar a cirurgia de readequação sexual, não constitui crime de lesão corporal.

Além disso, o deputado também propõe alterações no artigo 58 da Lei nº 6.015 de 31/12/1973 (Lei dos Registros Públicos). Com a aprovação do projeto, o artigo passaria a possuir três parágrafos. O primeiro praticamente idêntico ao original. O segundo parágrafo prevê nova hipótese de alteração do nome relacionada à realização da cirurgia de transgenitalização. O terceiro parágrafo dispõe sobre a averbação de ser a pessoa transexual no registro de nascimento e documento de identidade.

A comissão de Constituição e Justiça e de Redação fez ressalva sobre o parágrafo terceiro do projeto. A comissão “insurgiu-se contra a determinação de averbação de ser a pessoa transexual, com fundamento no art. 5º, X, da CF, que protege, entre outras coisas, a privacidade da pessoa. Além de agredir a privacidade da pessoa, a menção ao fato de ser transexual a expõe ao ridículo”. (06)

A comissão, então, propôs nova redação ao citado parágrafo, que passou a ser a seguinte: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. Foi apresentada, ainda, emenda aditiva que inclui mais um parágrafo ao artigo 58, além dos dois propostos pelo projeto. O quarto parágrafo tem a seguinte redação: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.

Contudo, há inúmeras questões que não foram abordadas no projeto. Apesar de seu valor por ter enfrentado a questão, o projeto possui diversas lacunas e ainda não poderá resolver completamente os problemas dos transexuais. “O referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa submeter-se à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorrentes do seu novo estado sexual. Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres”. (07)

Conforme assevera Elimar Szaniawsky: “embora reconheçamos que o Projeto de Lei 70-B, de 1995, de louvável iniciativa do deputado José Coimbra, se constitui em primeiro passo na solução dos problemas dos transexuais no Brasil, esse projeto de lei, lamentavelmente, não se constitui em uma lei que vá resolver, definitivamente, a situação difícil em que se encontram os transexuais em nosso país, a exemplo da Transsexuellengesetz alemã”. (08)

2.2. Outros países

Na maioria dos países europeus, a regulamentação da transexualidade se deu por meio de leis novas e específicas. Porém, nos Estados Unidos o processo de regulamentação se deu por meio da adaptação das leis já existentes, exceto nos Estados de Illinois, Arizona, Lousiana e Califórnia que possuem normas específicas.

“Em Illinois foi promulgada, em 1961, uma lei que permite ao State Registrar retificar a determinação do sexo no assento de nascimento, a partir da certidão da realização de intervenção cirúrgica no paciente. A legislação deste Estado determina que compete ao médico–cirurgião que realizou o tratamento cirúrgico de redesignação no transexual, atestar ao oficial de registros públicos a realização de modificação anatômica do paciente, sendo que este decidirá sobre a possibilidade de realizar a mudança do assento de nascimento do interessado, de acordo com o novo status sexual adquirido [...]. A Lousiana é o estado americano que possui a legislação mais completa e detalhada sobre a matéria transexual, promulgada em 1968, possuindo previsão legal expressa para a alteração do nome do transexual operado junto ao registro civil”. (09)

Além disso, nesses estados americanos, o transexual recebe um documento de identificação no qual é omitido o sexo originário. Justamente para que não sofram qualquer tipo de discriminação.

Já os estados de Arkansas, Colorado, Flórida, Havaí, Maryland, Michigan, Minnesota, New York, Ohio e Texas não possuem lei específica, contudo, possuem diversos regulamentos administrativos que disciplinam a matéria. “Em New York, é competente para regular e proceder à alteração de estado da pessoa, em especial dos transexuais redesignados, o órgão do Ministério da Saúde Pública. Tão importante é a competência da saúde pública, em matéria de alteração de estado de pessoas, que o próprio Judiciário se curva diante do poder administrativo”. (10)

Após a cirurgia e a conseqüente mudança no registro, o transexual pode levar vida normal, de acordo com seu sexo psíquico, podendo, inclusive, se casar. Todavia, poderá haver problemas se o transexual não revelar ao cônjuge que sofreu cirurgia de adequação sexual. O matrimônio poderá ser anulado por erro essencial ou fraude ou, ainda, poderá requer-se o divórcio.

Na Europa, a Convenção Européia dos Direitos do Homem tem influenciado decisivamente a regulamentação de normas jurídicas sobre a operação de adequação sexual, bem como a alteração do nome e gênero no registro civil. “O art. 8º da citada Convenção, que rege a proteção da vida privada e familiar das pessoas, onde se insere o direito à liberdade do indivíduo, tem servido de fundamento para possibilitar aos transexuais, portadores de diagnóstico que ateste a transexualidade verdadeira, de se submeterem à prática de cirurgia modificadora de sexo. O mencionado art. 8º provocou o alinhamento das legislações e da jurisprudência dos diversos países, no sentido de considerarem legítimas as operações de redesignação sexual e a conseqüente modificação do prenome e do estado sexual dos transexuais operados”. (11)

Na Bélgica, apesar de muitas controvérsias e decisões denegatórias, os tribunais têm se posicionado no sentido de deferir a mudança do registro dos transexuais.

Do mesmo modo, na França, após muita discussão e julgados e doutrinas contrárias, passou-se a admitir a mudança no assento de nascimento do transexual. Nesse sentido, “[...] o tribunal de Toulouse, através de sua decisão de 1976, veio definitivamente consagrar, no Direito Francês, a admissibilidade de redesignação de um transexual e a correspondente alteração de seu prenome no registro civil. O citado tribunal adotou, como princípio orientador de sua jurisprudência, para deferimento do direito à alteração do assento de nascimento, o seguinte critério: indivíduo que tenha sofrido em seu sexo, seja por fato da natureza, seja por elementos exteriores, transformações tais que não podem mais, sem causar graves perturbações, suportar o estatuto social correspondente ao sexo do registro”. (12) Essa decisão veio a influenciar fortemente toda a jurisprudência francesa no sentido de permitir a alteração no registro civil. Atualmente, portanto, a jurisprudência francesa em sua maioria tem se posicionado no sentido de admitir a modificação do assento de nascimento de transexuais que se submeteram à procedimento cirúrgico de adequação sexual.

Já na Alemanha, há muitos anos, tem–se admitido a castração voluntária do indivíduo. Nesse país nunca houve resistência muito forte contra as cirurgias de adequação de sexo. A lei “Gesetz uber die freiwillige Kastration und andere Bahandlungsmethoden”, promulgada em 1969, já regulamentava as cirurgias de esterilização voluntária e outros métodos terapêuticos.

A Itália, assim como a Alemanha, foi um dos primeiros países a regulamentar as normas para que transexuais operados pudessem fazer a retificação no registro civil. “A Corte Italiana, em 24 de maio de 1975, reformando decisão do Tribunal de Apelação de Nápoles, declarou que a retificação judicial de atribuição do sexo não se restringe ao caso de hermafroditismo, devendo ser aplicada também no transexualismo, pois o encontro da integridade psicofísica assegura o direito à saúde, que abrange a saúde psíquica”. (13)

A Suécia, em 1972, regulamentou a realização das operações de readequação sexual e a retificação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento de transexuais. Segundo a legislação sueca, “a cirurgia de redesignação sexual e os tratamentos hormonal e psíquico do paciente são gratuitos a todo cidadão sueco e aos estrangeiros residentes já há muitos anos no país”. (14)

Em Portugal, “o reconhecimento da adequação e retificação do sexo reside no art. 26 da Constituição portuguesa que consagra o direito à identidade pessoal, entendendo que o tratamento e a intervenção cirúrgica que visam modificar o sexo são terapêuticos, resguardando o direito à saúde física e psíquica. [...] A lei holandesa de 24 de abril de 1985 possibilita que o tribunal acate não só a mutação sexual como também a adequação do prenome no registro civil do transexual. [...] Na África do Sul há uma lei que confere competência ao Ministro do Interior para ordenar a retificação de atribuição de sexo constante do registro de nascimento, baseado na cirurgia de mutação sexual, adaptando o sexo físico ao psíquico”. (15)

3. Cirurgia de adequação sexual

3.1. O procedimento cirúrgico

A primeira cirurgia de adequação sexual, feita no Brasil, foi realizada pelo Doutor Roberto Farina no paciente Waldir Nogueira. “O transexual havia sido examinado por conceituados médicos, tendo todos, por unanimidade, diagnosticado ser o interessado um transexual primário, aconselhando-o a submeter-se à cirurgia de mudança de sexo como a única terapia indicada para o caso. Realizada a cirurgia, com pleno êxito, pelo Dr. Roberto Farina, tendo ocorrido a redesignação sexual do paciente”. (16)

Todavia, o procedimento cirúrgico rendeu ao cirurgião um processo criminal por lesão corporal. Condenado em primeira instância, o médico foi absolvido pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, por votação majoritária. O Tribunal deu provimento ao apelo, pois entendeu que “não age dolosamente o médico que, através de cirurgia, faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica”. (17)

Cabe ressaltar que essa cirurgia não é modificadora do sexo, é, apenas e tão somente, uma cirurgia de adequação sexual, que visa a reajustar o sexo biológico ao psicológico do indivíduo e, sobretudo, visa a diminuição do sofrimento pelo qual passam os transexuais (18).

Assim, a intervenção cirúrgica possui, nitidamente, caráter terapêutico, não há que se falar, portanto, em lesões corporais. Não há dolo, a conduta é atípica. Ademais, o paciente consente com a realização do procedimento cirúrgico. Fato que descaracteriza completamente o caráter ilícito da cirurgia.

Corroborando para esse entendimento, o art. 51, do Código de Ética Médica apregoa que "São lícitas as intervenções cirúrgicas com finalidade estética, desde que necessárias ou quando o defeito a ser removido ou atenuado seja fator de desajustamento psíquico”.

Em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução de número 1.482/97 (19), a qual autorizou a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualidade. A Resolução permitiu que as cirurgias fossem praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa. Além disso, a supracitada resolução estabeleceu que a definição de transexualidade observaria alguns critérios definidos, quais sejam: desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, ou seja, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; ausência de outros transtornos mentais. Regulamentou, ainda, que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo seria feita por meio de avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, após dois anos de acompanhamento conjunto.. O paciente deve ser maior de 21 (vinte e um) anos e não pode possuir características físicas inapropriadas para a cirurgia. Assim, somente com o diagnóstico médico de transexualismo
proferido pela junta de profissionais é que o transexual poderá realizar a cirurgia.

Com essa conquista, já não se torna necessária a autorização judicial para a realização da cirurgia. Sedimentou-se o entendimento de que a cirurgia é lícita e de que deve ser realizada diante da necessidade do tratamento, após a comprovação da patologia.

Consolidando tal entendimento, o ilustre Magistrado José Henrique Rodrigues Torres proferiu, em 14 de outubro de 1997, sentença autorizando a realização de cirurgia de mudança de sexo. Fundamentou a decisão nos artigos 5º, inciso III, 6º e 196 da Constituição Federal, no artigo 3º do Código de Processo Penal, nos princípios gerais de direito, nos princípios da jurisdição voluntária e nos artigos 1.104 e seguintes do Código de Processo Civil.

Em 06 de novembro de 2002, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº 1652 (20), que complementou a resolução anterior, autorizando a realização de cirurgia de adequação do fenótipo masculino para o feminino em hospitais públicos ou privados independente da atividade de pesquisa.

Assim, a neocolpovulvoplastia (cirurgia de adequação do sexo masculino para o feminino) poderá ser feita em qualquer hospital, público ou privado, mesmo que não haja atividade de pesquisa. Contudo, a autorização para a realização da neofaloplastia (cirurgia de adequação do sexo feminino para o masculino), é limitada aos hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa. Os interessados em realizar a cirurgia de transgenitalização deverão receber acompanhamento de equipe composta por médicos psiquiatras, psicólogos e assistente sociais, por um prazo de dois anos.

Do mesmo modo que a resolução anterior, somente após o período de dois anos, será expedido um parecer médico, o qual apontará a necessidade ou não da cirurgia. Para emitir o parecer, os médicos analisarão o desconforto que o paciente tem com o sexo anatômico natural, se há desejo expresso de eliminar os genitais e se o paciente não possui outros transtornos mentais. Esse procedimento é indispensável, pois somente a vontade livre e consciente do paciente não é suficiente para a realização da cirurgia, já que esta é irreversível. Vale lembrar que a cirurgia de transgenitalização é altamente complexa e, requer acompanhamento de equipe multidisciplinar não somente no pré-operatório, como também, no período que sucede a cirurgia.


3.2. O SUS e a cirurgia de adequação sexual.

Finalmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) vai oferecer cirurgias de adequação sexual para transexuais. Essa conquista foi anunciada, na 1ª Conferência de Estadual de Políticas Públicas para Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT), pela Diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do Ministério da Saúde, Ana Maria Costa. Ademais, recentemente, o do Ministro da Saúde informou que vai assinar portaria que autoriza o financiamento pelo SUS das operações de transgenitalização.

Tudo começou quando o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União, requerendo todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo SUS, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização e procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários. O Parquet Federal requereu, ainda, a edição de ato normativo que preveja, de modo expresso, na Tabela de Procedimentos remunerados pelo SUS (Tabela SIH-SUS), de todos os procedimentos cirúrgicos necessários para a realização da cirurgia.

Em primeira instância, a ação foi extinta sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido e inadequação da via eleita para a solução da questão posta em juízo. A sentença baseou suas conclusões na natureza programática da norma do artigo 196 da Constituição Federal, inexistindo, direito subjetivo violado.

No provimento judicial argumentou-se que o Poder Judiciário não pode exercer poder legiferante, sendo impróprio solucionar questão trazida de forma global, com efeito erga omnes, em ação civil pública. Considerou ainda que, questões científicas obstam o provimento requerido, uma vez que a Resolução do Conselho Federal de Medicina, considera a cirurgia de transgenitalização de caráter experimental, havendo, inclusive, disposição administrativa pela inclusão do aludido procedimento no âmbito do SUS, a partir de Resolução do Conselho Federal de Medicina que altera a condição atual desse procedimento.

Diante desse resultado negativo, o Ministério Público Federal apelou e a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, deu provimento ao pelo.
O ilustre relator Doutor Roger Raupp Rios magistralmente fundamentou sua decisão nos direitos fundamentais da igualdade, da proibição de discriminação por motivo de sexo, da liberdade, do livre desenvolvimento da personalidade, da privacidade, do respeito à dignidade humana, bem como o direito à saúde.

Com efeito, a exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, pois este procedimento já é ofertado no âmbito do SUS a todos os indivíduos que dele necessitam, tais como para pessoas que possuem câncer nas genitálias. Além disso, as cirurgias de adequação sexual não configuram ilícito penal, cuidando-se de tópicas prestações de saúde, sem caráter mutilador.

O direito à saúde, explicitado no artigo 196 da Magna Carta é apenas um desdobramento de um dos fundamentos constitucionais: a dignidade humana. Além disso, ele complementa os artigos 5º, “caput” (que garante o direito à inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, e à segurança) e o 6º (que expressa os direitos saciais) ambos da Constituição Federal.

Como bem asseverou o relator, “o direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição” (21).

A saúde é um direito de todos os cidadãos, e é dever do Estado promovê-la. Para isso, foi criado o Sistema Único de Saúde, que possui como princípio o atendimento integral, como disposto no artigo 198, inciso II, da Magna Carta. Dessa forma, todos os cidadãos têm o direito ao acesso a todos os serviços de saúde e aos procedimentos existentes e previstos no sistema médico.

Portanto, o financiamento de procedimentos médicos existentes e necessários aos cidadãos deve ser feito a todos de forma igualitária, não podendo ser recusado para os transexuais que desejam fazer a cirurgia de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia.

A transexualidade é doença internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, a partir de recomendação expedida na 9ª Conferência de Revisão, no ano de 1975, e que foi incluída na Classificação Internacional de Doenças – CID 10 – sob o código F64.0, com a seguinte definição: “Trata-se de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar ser corpo tanto quanto possível ao sexo desejado”. Dessa forma, o Estado não pode negar aos transexuais o acesso a procedimento médico existente, possível e que é ofertado pela rede hospitalar, como é o caso das cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia.

O único tratamento médico que os transexuais necessitam, e que é aceito consensualmente pela comunidade científica internacional, é a cirurgia de adequação sexual. Tal procedimento já poderia ser pago pelo SUS com base em procedimento similar previsto na Tabela de Procedimentos. A inclusão dos procedimentos médicos relativos à transexualidade, dentre aqueles previstos na Tabela SIH-SUS, configura correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público de saúde.

Ademais, essa cirurgia já foi feita inúmeras vezes, em hospitais universitários no país inteiro. Destarte, disponibilizar cirurgia similar a pessoas que possuem outras moléstias, tais como pessoas que sofreram grave lesão na genitália, e não disponibilizá-la para transexuais constitui flagrante violação ao direito à igualdade e à norma constitucional que proíbe a discriminação, já que impede o acesso igualitário ao serviço público por todos os indivíduos.

Conforme o relator, “[...] as cirurgias requeridas já existem e são prestadas como procedimento remunerado aos hospitais pelo SUS; a exclusão das transexuais deste regime está proibida constitucionalmente, em virtude dos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e respeito à dignidade, que obrigam o Estado a não excluí-las. Para se acolher o provimento requerido, portanto, basta que o Estado se abstenha de atentar contra a realização do direito social já existente, pelo que a proteção judicial, aqui, dá-se no quadro típico da garantia dos direitos fundamentais clássicos”. (22)

Conforme destaca a resolução 1482/1997 do Conselho Federal de Medicina: “a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento do transexualismo” e ser “o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com relação do fenótipo e tendência à automutilação e ao auto-extermínio”. Assim, além do direito à saúde, os transexuais merecem ter respeitado o direito à vida, já que possuem tendência ao suicídio, caso não tenham acesso a tratamento adequado.

Ademais, [...] ao reclamar a realização de uma cirurgia de adequação de sexo não está o transexual a defender o direito de embelezar-se por simples vaidade, mas objetiva ele a proteção ao seu direito à saúde, não merecendo tal prática esbarrar em uma proibição. A saúde do indivíduo é muito mais importante que a manutenção de uma parte do corpo comprovadamente inoperante. O tratamento é, portanto, uma questão de saúde, que o Poder Público é obrigado a prestar, conforme claramente determinam os artigos 6º e 196 da Constituição Brasileira. Cabe recordar que na hipótese de transexualismo não se está falando de um ato de vontade do cidadão, mas de uma moléstia que nenhum cidadão escolhe ter. Assim, o transexualismo não decorre diretamente da invocação do direito de dispor de ser próprio corpo, como uma variante do direito à liberdade sexual. O transexualismo, no plano jurídico, decorre do direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. (23)

Nesse sentido, quando o Estado se nega a oferecer tratamento médico aos transexuais, não só o direito à saúde é violado, o direito à igualdade e o direito à vida também o são. Além de constituir ofensa a norma constitucional que proíbe a discriminação por motivo de sexo. Tal discriminação compreende, não só, os tratamentos desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, como também os tratamentos desfavoráveis decorrentes de gênero, relativos ao papel social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade.

4. A mudança de nome e de sexo no registro civil

A questão da mudança de nome e do sexo no registro civil suscita muita divergência entre entendimentos, pois, como já dito, no Brasil ainda não há legislação específica regulamentando o tema.

A maioria dos juízes e desembargadores negam o pedido de retificação pelo fato de ao haver lei própria regulamentando a questão. (24) Segundo eles, o registro é imutável, só podendo ser retificado em casos específicos e expressamente previstos em lei. Alguns magistrados, todavia, deferem a mudança de sexo e nome em casos de intersexualismo. Em 06.08.1991 a 3ª Câmara Civil de Férisa “B” do Tribunal de Justiça, AC 148.078, RT 672/108, Rel. Dês. Flávio Pinheiro, proferiu decisão argumentando que: “A retificação de registro de nascimento para mudança de sexo e nos tem sido admitida apenas nos casos de intersexualismo. O despojamento cirúrgico do equipamento sexual e reprodutivo e o sexo psicologicamente diverso das conformações e características somáticas ostentadas, configurando transexualismo, não permitem a alteração jurídica”. (25)

Não obstante, parte da jurisprudência brasileira evoluiu, reconhecendo que a situação do transexual merece tratamento especial. Diversos juízes já concederam a retificação do registro civil. O relator Boris Kauffman, da 5ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Civil nº 165.157-4/5-00, julgada em 22/03/2001, deferiu a modificação de prenome masculino para feminino de pretensão manifestada por transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo. Foi admitida a mudança mesmo sem a existência a de erro no registro, pois é circunstância que expõe o requerente ao ridículo. O julgamento foi proferido com interpretação do art. 55, parágrafo único, c.c. o art. 109 da Lei 6.515/73.

Do mesmo modo decidiu o Desembargador Elliot Akel, da 1ª Câmara, do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação nº209.101-4/0-00, julgada em 09/04/2002. O magistrado admitiu a alteração do estado sexual no assento de nascimento na pretensão de transexual primário, submetido à cirurgia de mudança de sexo, que teve seu pedido de alteração de prenome deferido. Segundo o Desembargador, o requerente, após a intervenção cirúrgica, passou a ter as principais características morfológicas de uma mulher.

Em que pese a imutabilidade do registro, prevista no artigo 58 da lei nº 6.015/73, essa impossibilidade não pode expor o transexual ao ridículo em situações cotidianas vexatórias, já que o transexual possui aparência que não condiz com o nome e sexo constantes nos documentos.

Nesse sentido, é o entendimento da jurisprudência internacional. “A Corte italiana, em 24 de maio de 1975, reformando decisão do Tribunal de Apelação de Nápoles, declarou que a retificação judicial de atribuição do sexo não se restringe ao caso de hermafroditismo, devendo ser aplicada também no de transexualismo, pois o encontro da integridade psicofísica assegura o direito à saúde, que abrange a saúde psíquica”. (26)

Um caso de mudança de nome e de gênero que teve repercussão nacional foi o da transexual Roberta Close. Nascida com o nome de Luís Roberto Gambine Moreira, Roberta se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo, de homem para mulher, em 1989, na Inglaterra. Em sentença de primeira instância a Juíza da 8ª Vara da Família do Rio de Janeiro, Doutora Conceição Mousnier proferiu sentença concedendo a mudança de nome. Conforme trecho da sentença: “manter-se um ser amorfo, por um lado mulher, psíquica e anatomicamente reajustada, e por outro lado homem, juridicamente, em nada contribuiria para a preservação da ordem social e da moral, parecendo-nos muito pelo contrário um fator de instabilidade para todos aqueles que com ela contactassem, quer nas relações pessoais, sociais e profissionais, além de construiu solução amarga, destrutiva, incompatível com a vida” (27). Contudo, a juíza fez constar a ressalva ‘operada’. Infelizmente, em 1997, a alteração foi negada pelo Supremo Tribunal Federal. Após diversas batalhas judiciais, no ano de 2005, em uma nova ação, a Juíza Leise Rodrigues de Lima Espírito Santo autorizou a alteração no Registro Civil de seu nome e gênero.

Nesse mesmo sentido foi a sentença do magistrado Henrique Nelson Calandra, da 7ª Vara da Família e Sucessões da Capital, que concedeu ao transexual João Bosco, o direito de se chamar Joana. Porém, na certidão de nascimento, no local reservado ao sexo deveria fazer constar a inscrição transexual. Tal solução não é completamente funcional ao transexual, pois continua sendo discriminatória. O transexual continuará sofrendo com situações vexatórias. Conforme trecho da sentença: “[...] não sendo possível diante da omissão do legislador, lhe negar amparo, mantendo-o numa condição à margem do Direito, ficando a justiça petrificada e cega diante da sua situação, que, embora possa por alguns ser considerada afrontosa ao que a sociedade considera normal, não pode ser ignorada”. (28)

Cabe ressaltar que parte da jurisprudência tem admitido a mudança do nome no registro, porém, no lugar reservado ao sexo deve-se colocar o termo ‘transexual’. Todavia, a inserção do termo transexual é discriminatória. Portanto, não deve ser colocada. (29)

No mesmo sentido é o pensamento de Antônio Chaves: “[...] essas posições são intermediárias e não satisfazem o desejo da pessoa. Cabe ao transexual operado ser sincero. No caso de eventual engano, [...] afirma que a solução pode ser encontrada na anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa. Não se pode etiquetar os transexuais. Eles querem levar uma vida normal”. (30)

Teresa Rodrigues Vieira, por sua vez, acredita que “os registros públicos relatam fatos históricos da vida do indivíduo. Assim, [...] a adequação do prenome e do sexo deve constar para demonstrar que determinado indivíduo passa oficialmente, a partir daquele momento, e não do seu nascimento, a chamar-se fulano de tal, pertencente ao sexo X (não retroativo). Entendemos que os direitos dos transexuais e de terceiros estariam muito mais explicitamente assegurados se, no Registro Civil, constar a alteração ocorrida. Trata-se de uma ação modificadora do estado da pessoa, com a adequação do sexo, devendo, portanto, ser averbada (art. 29, §10, letra f, da Lei 6.015/73). Todavia, defendemos que não deverá ocorrer nenhuma referência à aludida alteração na Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Carteira de Trabalho, Cadastro Bancário, Título de Eleitor , Cartões de Crédito e etc.” (31)

Em suma, o tratamento jurídico no tocante ao gênero só reconhece o masculino e o feminino. A colocação do termo ‘transexual’ no lugar do sexo geraria um terceiro sexo, fato que se mostra um completo absurdo. Além disso, o transexual continuaria sofrendo discriminação e ridicularização. Quando o transexual requer a retificação do registro, é justamente a possibilidade de viver normalmente, ou seja, sem passar por situações vexatórias que ele anseia.

Maria Helena Diniz entende que “deve haver a adequação do prenome ao novo sexo do transexual operado sem qualquer referência discriminatória na carteira de identidade, de trabalho, no título de eleitor, no CPF etc. ou averbação sigilosa no registro de nascimento, porque isso impediria a sua plena integração social e afetiva e obstaria seu direito ao esquecimento do estado anterior, que lhe causou tanto sofrimento”. (32)

Outro importante passo dado foi o do juiz Guilherme Madeira Dezem que prolatou sentença favorável no sentido de autorizar a troca de nome, sem a realização da cirurgia de adequação sexual, e disse que, infelizmente, esse não é o entendimento da maioria dos juízes. Aduziu o magistrado que fundamentou sua decisão no princípio da dignidade da pessoa humana, implicando dizer que “a pessoa merece o tratamento amplo e máximo autorizado pelo sistema”. Outro fundamento utilizado na sentença foi o princípio da veracidade registrária, segundo o qual “o registro, a documentação representa, efetivamente, a situação vivida pela pessoa”. De forma que, uma pessoa com aparência feminina, não pode possuir um nome masculino, ou vice-versa, pois isso acarretaria um constrangimento desnecessário para a pessoa perante a sociedade. Segundo o magistrado, o autor é notoriamente conhecido como mulher, e não necessita da cirurgia para ser considerado transexual. “Disto decorre a seguinte situação: o autor não pretende fazer, por ora, a cirurgia de mudança e, assim, o representante ministerial entende que o princípio da veracidade registrária seria ferido, pois haveria incongruência entre o nome Renata e o sexo masculino aposto no documento. Mas essa incongruência já existe no plano concreto da vida: o autor, com sua aparência feminina, é constantemente objeto, no mínimo, de olhares curiosos quando instado a apresentar sua documentação”. (33)

Conforme Teresa Rodrigues Vieira, muitos transexuais já conseguiram a mudança do nome e sexo. Fato que mudou a vida deles para melhor, pois somente com essa conquista os transexuais conseguem viver a vida normalmente, como deve ser. (34)

Celso de Mello, igualmente, defende o direito do transexual de retificar a documentação, no tocante ao nome e ao gênero. Para ele, nada basta a realização da cirurgia de adequação se a pessoa continua vivendo o constrangimento de se apresentar como portadora do sexo oposto.

Os juristas atualmente têm levado em consideração o conceito do sexo psicológico, papel social. Outrossim, a lei 9.708/1998 alterou a redação do artigo 58 da lei 6.015/1973, que prevê a imutabilidade do nome, fato que também contribuiu para as questões de mudança de nome. A nova lei permite a substituição do nome por apelidos públicos notórios. Assim, os transexuais não devem possuir um nome o qual não se adequa à realidade, pois não exprime a verdade.

5. Outros desafios na proteção jurídica do transexual

Existem diversas conseqüências decorrentes da cirurgia de adequação sexual e da mudança do nome e do sexo no registro civil. Diversas indagações surgem com relação a situação jurídica dos transexuais. Seguem, abaixo, algumas delas.

O transexual, que já é casado, poderá se submeter à cirurgia? Precisa pedir o divórcio? Precisa da anuência do cônjuge? O cônjuge poderá pedir separação litigiosa se o outro consorte passar a ter perturbação de identidade sexual? O transexual, após a cirurgia, poderá se casar ou constituir união estável? O transexual que já possui filhos, após a cirurgia, não pode mais exercer o poder familiar? E nos esportes? Poderá o transexual participar de competições? Poderá adotar? E, ainda, após a cirurgia, se o transexual for preso? Deverá ir para a cadeia feminina ou masculina? Poderá o transexual, após a cirurgia, resolver utilizar o útero remanescente para gerar um filho?

O transexual que conseguir mudar o assento de nascimento, no tocante ao nome e ao sexo, poderá, então, convolar núpcias. Segundo Elimar Szaniawski, “o transexual que tenha mudado de sexo, mediante tratamento hormonal e cirúrgico, e que tenha redesignado seu assento de nascimento tem o direito de casar, devendo o casamento ser realizado com pessoa do sexo oposto ao seu sexo psíquico e civil, atual”. (35)

O transexual, que já é casado, não deve se submeter à cirurgia. Só deverá se submeter à cirurgia pessoa solteira, viúva ou divorciada.

Segundo o entendimento de Maria Helena Diniz, “a cirurgia de conversão de sexo, para evitar constrangimento ao cônjuge, só deverá, ser feita em transexual solteiro, divorciado ou viúvo” (36).

Nesse mesmo sentido é o entendimento de Teresa Rodrigues Vieira, segundo ela “dificilmente as tendências transexuais são supervenientes ao matrimônio. Apesar dessa crença, entendemos que o celibato não deve ser imposto como condição para a realização da cirurgia. Visando, portanto, evitar desarranjos constrangedores ao cônjuge e à prole, o reconhecimento jurídico da adequação de sexo deve ser concedido apenas ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo. Estando ainda o indivíduo sob a égide do casamento, assentimos que a cirurgia de adequação de sexo é motivo para a dissolução do vínculo, pela identidade de sexo dos cônjuges. A sentença que ordena a adequação de sexo possui efeitos ex nunc; no entanto, não está o transexual isento de prestar alimentos ao cônjuge e aos filhos”. (37)

No tocante ao poder familiar, a questão é muito complicada, pois não há como se exigir que o transexual perceba seu transtorno de identidade desde a epigênese da infância, bem como, não se pode deixar de tutelar o bem estar do ex-cônjuge e dos filhos. As leis sueca e alemã vedam a cirurgia de adequação para pessoas casadas. “Para evitar traumas ao ex-cônjuge e aos filhos, as leis alemã e sueca vedam a redesignação sexual a pessoa casada, permitindo-a somente à solteira. Isto porque haverá problemas no relacionamento com a prole, que terá dificuldades no convívio social, ficando sem saber como deverá tratar o genitor que mudou de sexo”. (38)

Luiz Alberto David Araújo sustenta que: “o fato de ter sido casado e de ter filhos não pode constituir obstáculo, por si, ao direito de felicidade do transexual. Trata-se de fatores que dificultarão sua nova realidade (especialmente diante da existência de filhos menores). No entanto, a regra não pode ser proibitiva, devendo ser analisada dentro do contexto da realidade, com apoio psicológico para os filhos. Caso não houvesse prejuízos para estas, se menores, a cirurgia poderia ser autorizada”.(39)

Quanto à adoção, segundo Vieira, “o transexualismo por si só não retira do indivíduo a idoneidade e a aptidão para instruir uma criança. Tal circunstância não depõe contra a índole moral do indivíduo, nem vai de encontro aos interesses do adotado. Assim, posicionamo-nos favoravelmente à adoção por parte de um transexual verdadeiro, por entendermos que este possui a capacidade de dar à criança a família que lhe falta”. (40)

O tema da transexualidade é muito polêmico e gera muitas indagações, tanto no plano médico, quanto no jurídico. São dúvidas que, constantemente emergem e, muitas delas, ainda não possuem resposta.


6. Conclusões

A sociedade está em constante mutação e o Direito deve acompanhar essas mudanças. Tanto no plano jurídico, quanto no plano legislativo.

Antigos dogmas devem ser suplantados. O sexo não pode ser considerado apenas em seu aspecto morfológico, de acordo com a genitália externa. A noção de sexo é complexa, pois engloba diversos componentes, inclusive o psicológico. Assim, conceito de sexo que leva em consideração apenas aspectos morfológicos é insuficiente. Dessa forma, o sexo jurídico deve ser o mesmo do sexo vivido psíquica e socialmente pela pessoa.

Nesse sentido, o transexual é uma pessoa que possui um sexo morfológico, porém, psicologicamente se identifica com o sexo oposto. A cirurgia de readequação sexual mostra-se como a única alternativa para a solução deste problema, pois somente assim o transexual poderá viver uma vida normal, longe de discriminações. Ademais, essa cirurgia não possui caráter mutilador e sim, terapêutico. Portanto, sua realização, em paciente que apresente disforia de gênero, é lícita. A conduta do médico não pode ser considera como crime de lesões corporais. O Conselho Federal de Medicina, por meio de resoluções já autoriza a realização da cirurgia. Além disso, tal cirurgia já é feita há muito tempo, e proporciona ótimos resultados. Devendo ser custeada pelo SUS, para que todos os transexuais possam realizá-la, e não somente aqueles que possuem recursos.

Porém, a cirurgia de readequação sexual não resolve todos os problemas dos transexuais. A cirurgia os ajuda a desempenharam o sexo social que se identificam psiquicamente, mas há outros aspectos tais como a mudança do nome e do gênero no registro civil que também são necessidades urgentes dos transexuais, pois ninguém deve ser vítima de tratamentos discriminatórios e situações vexatórias. É o que ocorre quando a aparência física não coincide com o sexo e nome constantes dos registros.
Assim, apesar de no Brasil ainda não existir legislação específica sobre o tema, é necessário que os magistrados, ao proferirem sentenças, levem em consideração os princípios gerais do Direito, visando a proteger o transexual, que é um indivíduo como outro qualquer e que merece ver assegurados seus direitos fundamentais. Cabe ressaltar que é necessidade urgente a promulgação de uma lei ampla que abarque toda a problemática transexual, o que já vem ocorrendo em países no mundo inteiro.
Cabe salientar que o novo assento de nascimento do transexual não deve contar qualquer menção de o indivíduo ser transexual, tal fato atenta contra o direito de personalidade. Além de gerar, da mesma forma, discriminação social.

A mudança de prenome e de sexo dos transexuais é uma forma de satisfazer aos anseios dos transexuais com o objetivo de viverem normalmente em sociedade. A cirurgia põe fim aos conflitos pessoais e a mudança do registro põe fim aos conflitos sociais do individuo, já que com a retificação, ele deixa de passar por situações vexatórias e humilhantes perante a sociedade. Ademais, os transexuais têm direito à identidade, à honra, à integridade psíquica e à vida privada.

Assim, para concluir, as sábias palavras de Elimar Szaniavski: “o problema do transexualismo existe, a intervenção cirúrgica de mudança de sexo é considerada, pela ciência, a melhor terapia para reajustar esses indivíduos à sociedade. Não podemos, simplesmente, deixar predominar a hipocrisia e continuar marchando na contramão da história e do desenvolvimento científico [...]. Cabe, assim, a nós juristas e operadores do Direito, de uma maneira primordial ao Poder Legislativo e à sociedade como um todo, lutar no sentido de combater preconceitos tão arraigados e afirmar como verdadeiras as palavras contidas em nossa Constituição: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (41).


(1) Estudante do 5º ano da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, estagiária do Ministério Público Federal.

(2) SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo: Aspectos médico-legais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p.105.

(3) Ibidem. p. 164.

(4) A Lei de Introdução ao Código Civil apregoa em seu artigo 4º que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Do mesmo modo, o artigo 5º da referida lei aduz: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

(5) Tribunal Regional Federal da 4ª Região - Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS.

(6) PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 182.

(7) PERES. Op. cit. p. 267.

(8) SZANIAWSKI. Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 203.

(9) Ibidem. p. 209.

(10) Ibidem. p. 211-212.

(11) Ibidem. p. 214.

(12) Ibidem. p. 235.

(13) DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva., 2006. p. 298.

(14) SZANIAWSKI. Op. cit. p. 246.

(15) DINIZ. Op. cit. p. 298.

(16) SZANIAWSKI, Op. cit. p. 109.

(17) CARVALHO, Hilário Veiga de. Transexualismo – Diagnóstico – Conduta médica a ser adotada. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 545, mar. 1981. p. 289-298.

(18) Esse foi o posicionamento do Relator, Doutor Hilário Veiga de Carvalho, no caso: Ora, a função é que define o órgão; sem aquela, este órgão é inútil. Em Waldir Nogueira, os seus órgãos genitais externos eram inúteis. E, pior que inúteis, passaram a ser prejudiciais ao sentimento íntimo da personalidade de Waldir, desde que lhe apontaram um sexo que, psiquicamente, em todo o seu conjunto, só lhe causava repúdio, ao se sentir mulher, e ao sê-lo em diversos setores da sua morfologia e funcionalidade. Assim, Waldir Nogueira não foi castrado, em verdade, desde que não perdeu uma função que não possuía. (CARVALHO, Op.cit. p. 289-298).

(19) Resolução CFM nº1482 de 1997. Fonte: Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1, p. 20.944.

(20) Resolução CFM nº 1652 de 2002. Fonte: Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, n. 232, 2 dez. 2002. Seção 1, p. 80.

(21) Tribunal Regional Federal da 4ª Região - Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS – Ementa, item 08.

(22) Tribunal Regional Federal da 4ª Região - Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS

(23) FRANCIS C. Bordas, Marcia M. Raymundo e José Roberto Goldim, in Aspectos biomédicos e jurídicos do transexualismo, publicado no Revista HCPA, vol. 20, nº 02 Agosto de 2000.

(24) A doutrina e a jurisprudência têm negado, em sua maioria, a retificação do registro civil do transexual operado, alegando que o registro público deve ser preciso e regular, constituindo a expressão da verdade, e a operação de mudança de sexo atribui ao interessado um sexo que não tinha, nem poderá ter, porque o fim da procriação nunca será atingido, pois não se terá nem um homem, nem uma mulher, mas um ser humano mutilado, em que pesem a alteração comportamental, a ingestão de hormônios e a modelação física com silicone ou cirurgia estética. (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.297).

(25) CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo (intersexualidade, transexualidade, transplante) 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 157.

(26) DINIZ. Op. cit. p.298.

(27) CHAVES. Op. cit..p. 160.

(28) CALANDRA, Henrique Nelson. Decisões de relevo especial. Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Direito de Família. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais,1995. p. 275.

(29) Rosa Maria Andrade Nery, apesar de ser contrária à mudança de sexo, entende que, se foi constatada a mudança de sexo, o registro deve fazer a acomodação. Os documentos têm de ser fiéis aos fatos da vida e deve haver segurança nos registros públicos. Fazer ressalva é uma ofensa à dignidade humana. Realmente, ante o direito à identidade sexual, como ficaria a pessoa se se colocasse no lugar de sexo ‘transexual’? Sugere a autora que se faça uma averbação sigilosa no registro de nascimento, assim, o interessado, no momento do casamento, poderia pedir, na justiça, uma certidão de ‘inteiro teor’, onde consta o sigilo. (DINIZ. Op. cit. p.300).

(30) CHAVES. Op.cit. p. 161.

(31) VIEIRA, Teresa Rodrigues. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo. Psicólogo informação ano 4, nº 4, jan/dez. 2000.

(32) DINIZ. Op. cit. p.300.

(33) Processo nº 2007.101.460-6 - 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital do Estado de São Paulo - D O E - Edição de 20/07/2007 - Arquivo: 1381 Publicação: 146.

(34) VIEIRA. op.cit.

(35) SZANIAWSKI. Op. cit. p. 266.

(36) DINIZ. Op. cit. p.304.

(37) VIEIRA. Op. cit. p.12.

(38) DINIZ. Op. cit. p.304.

(39) ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 145.

(40) VIEIRA. Op. cit. p.12.

(41) SZANIAWSKI. Op. cit. p. 268

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