sábado, 4 de agosto de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATENDIMENTO ÀS TRAVESTIS E AOS TRANSEXUAIS NO CAMPO DA SAÚDE: A NECESSÁRIA INTERSEÇÃO DAS DEMAIS POLÍTICAS SOCIAIS PARA UM ATENDIMENTO DE QUALIDADE.





MÁRCIA CRISTINA SANTOS

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Resumo:
As reflexões levantadas no presente trabalho são provenientes da intervenção de uma
equipe de assistentes sociais  do programa do processo transexualizador  de uma
instituição de ensino e saúde no Estado do Rio de Janeiro. Percebeu-se que as pessoas
transexuais e travestis  apresentam níveis de escolaridade baixos. Relatos dos usuários
atendidos apontam o isolamento no espaço escolar e a vergonha diante das humilhações
sofridas e provocadas, sobretudo pelos colegas de classe, como motivos do não
prosseguimento dos estudos e abandono escolar ainda no ensino fundamental. O
presente estudo trabalha com dados oriundos do atendimento social utilizando
informações da entrevista inicial buscando  articular a  dificuldade de inserção no
mercado de trabalho, a baixa escolaridade e baixa autoestima à problemática do acesso e
permanência na escola e a formação profissional.
Palavras-chave: Gênero, diversidade sexual, saúde coletiva, abandono escolar,
integralidade.
                                                       
1
Assistente Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ Hospital universitário Pedro
Ernesto. mcristinabrasil@hotmail.com.Introdução:
Esse tema surgiu como objeto de nossa reflexão a partir da intervenção
cotidiana na  condição de Assistente Social de uma equipe multiprofissional que
desenvolve parte de suas atividades laborativas e de pesquisa no Hospital Universitário
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um dos quatro Centros de Referência para
realização de cirurgias de redesignação sexual existentes atualmente no Brasil.
Por este motivo e, por ser um hospital universitário de grande porte, o HUPE, tornou-se
ao lado de outras três
2
grandes unidades de saúde do país, um dos Centros de Referência do
Processo Transexualizador no SUS. Entende-se por processo transexualizador “o conjunto de
alterações corporais e sociais que possibilitam a passagem do gênero atribuído para o gênero
identificado; a cirurgia de “redesignação sexual” não é a única etapa deste processo” (Bento, B.
2008: 146), cabendo ao sistema de saúde e demais segmentos das políticas públicas (educação,
assistência, previdência, justiça, entre outros) uma ampla e complexa teia de ações no sentido de
garantir o acesso e usufruto dos direitos humanos, princípios inalienáveis a serem perseguidos
incansavelmente por todos aqueles e aquelas que sonham com uma sociedade mais justa e
emancipada, na qual os direitos humanos mais básicos sejam respeitados e garantidos a todas e
todos.
O Hospital Universitário Pedro Ernesto e as ações de saúde voltadas para o
atendimento aos Transexuais.
O programa executor do Processo Transexualizador do SUS no Rio de Janeiro,
desenvolve-se atualmente no HUPE sob o nome GEN – Grupo de Atenção Integral à
Saúde Transexual. Inicialmente,  chamava-se “Grupo multidisciplinar de Atenção
Integral à Saúde do Portador de Disforia de Gênero”, mas em razão do “movimento de
despatologização”
3
, foi substituída  posteriormente a expressão “disforia de gênero” por
“saúde transexual”.
Em 2009, o Programa GEN contava com 129 usuários (as) em
acompanhamento, um número em constante crescimento. Destes, 116 eram mulheres
transexuais e 13 homens transexuais. Já haviam sido realizadas  47 cirurgias, 475
atendimentos urológicos,779 atendimentos em saúde mental, 320 atendimentos
especializados e o tempo médio de espera para a cirurgia após a liberação da saúde
mental era em torno de 36 meses (3 anos).
Como o HUPE é um dos quatro centros  de referência do processo
transexualizador brasileiro, ele recebe moradores do Rio de Janeiro (capital e interior) e

                                                       
2
  Os outros Centros  que desenvolvem  esse serviço são  o HC da USP,  o HC da UFRGS e o HC da UFG
3
Para uma discussão tanto da patologização da transexualidade quanto em torno da campanha internacional pela despatologização,
cf. Bento (2008).de muitos outros estados (Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Brasília e
Goiânia) e até usuários de outros países (Colômbia e Argentina).
O objetivo primário do Programa GEN tem sido o de “promover atenção integral
à saúde de pessoas que vivenciam a transexualidade”. Tal objetivo se desdobra em
objetivos secundários, que são: “facilitar a inclusão social; melhorar a qualidade de
vida; realizar estudos científicos; formar recursos humanos especializados” (Silva,
2010:334).
O Serviço Social e o Processo Transexualizador do HUPE: construindo
caminhos para a intervenção profissional.
A equipe de serviço social do HUPE  deparou-se com a questão do processo
transexualizador em 2003, a partir da demanda de uma usuária transexual na enfermaria
feminina de urologia do hospital
4
. Á época, o que dava sustentação aos procedimentos
realizados pela equipe médica era a Resolução 1482 de 10/09/1997 do Conselho Federal
de Medicina.
Vale informar que naquele momento não havia acúmulo de discussão quanto a
esse processo, nem práticas profissionais que se oferecessem como objeto de reflexão,
processo que vem, gradativamente, sofrendo alterações na medida em que a equipe de
serviço social começa a ter como perspectiva uma inserção mais qualificada e
sistematizada, inclusive para poder atender os requisitos da Portaria 457/08, marco legal
que juntamente com a Portaria 1707/08 dão sustentação  a todo o Processo
Transexualizador no SUS.
A portaria 457/08, além de definir os elementos constitutivos básicos para a
habilitação do hospital como Unidade de Atenção Especializada no Processo
Transexualizador tais como componentes da equipe, estrutura necessária, aponta as
diretrizes a ser desempenhadas e o papel de cada profissional naquele processo
5
.
Assim, de acordo com as Diretrizes de Assistência ao individuo com indicação
para a realização do Processo Transexualizador, o papel do assistente social  é o de
                                                       
4
Cabe aqui registrar os esforços empreendidos pelas assistentes sociais Elisabeth da Luz marques e Marina Queiróz de Souza que
foram as pioneiras nesta área, iniciando um trabalho totalmente novo e sem referenciais de experiências concretas com as quais
pudessem se guiar na consecução desse trabalho tão inovador.
5
O Hospital credenciado/habilitado como Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador deve contar com um
responsável técnico pelo serviço de cirurgia, médico membro titular da Sociedade Brasileira de Urologia (...) o médico responsável
técnico só poderá assumir a responsabilidade técnica por uma única Unidade credenciada/habilitada pelo Sistema único de Saúde.
Devendo residir no mesmo município ou cidade circunvizinha. A equipe cirúrgica deve contar com profissionais capacitados para
este tipo de assistência, garantindo a intervenção de forma articulada nas intercorrências cirúrgicas e clínicas do pós-operatório.
- Anestesiologia: médico com certificado de Residência Médica reconhecida pelo MEC em anestesia, ou título de especialista em
Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia;
- Enfermagem: enfermeiro coordenador e enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem em quantidade
suficiente;
- Equipe multidisciplinar: composta por psiquiatra e endocrinologista (...), Psicólogo e Assistente social. CF Portaria Ministério da
Saúde n.457, de 19/ 08/ 2008.reconhecer a dinâmica relacional do usuário a fim de promover estratégias de inserção
social na família, no trabalho, nas instituições de ensino e nos demais espaços sociais
prementes na vida do usuário transexual
6
.
Nesse sentido, se apresenta para a intervenção profissional do assistente social
uma gama bastante diversificada de demandas trazidas pelos usuários que chegam ao
Serviço Social, traduzidas a partir das queixas quanto à demora do procedimento
cirúrgico; os conflitos familiares causados pela rejeição; a rede de apoio restrita; a
fragilidade em termos de cobertura previdenciária; a dificuldade na garantia do trabalho
e o acesso aos medicamentos; tratamento fora do domicílio (TFD); estigmas e
preconceito social que envolve o espaço de inserção escolar, moradia e demais espaços
sociais bem como questões acerca de seus registros de identidade e demais documentos.
É no cotidiano dessas intervenções que, nós profissionais nos deparamos com
uma realidade marcada por interdições várias e violação dos direitos humanos mais
elementares, realidade invisível para aqueles que não estão inseridos de alguma forma
nesta discussão. Dentre tais demandas, elegemos para essa reflexão um tema que nos
parece muito caro uma vez que a partir dele, outras questões se somam.
Trata-se do acesso e permanência ao ensino e escolarização formal. No âmbito
da saúde, a partir de uma perspectiva crítico-dialética embasada pelo referencial teórico
marxista, sobretudo pela categoria da totalidade, podemos compreender que aquele
sujeito em idade produtiva que chega para a nossa intervenção sem qualificação para o
trabalho, sem vínculos previdenciários, sem renda e ocupação teve uma trajetória de
violação de seus direitos desde a mais tenra idade.
Neste sentido, o olhar do profissional que está inserido no campo das políticas
de saúde se volta para os demais âmbitos das políticas públicas ansiando pela
materialização de integralidade na elaboração, gestão e oferta dos serviços. A realidade
tem nos apontado que para o enfrentamento de tais questões é preciso que tenhamos um
esforço coletivo de qualificação de recursos humanos e um olhar e comprometimento
dos diversos campos das políticas sociais.
As usuárias e usuários que temos atendidos no cotidiano do hospital
universitário são os mesmos que têm seus direitos interditados no âmbito da educação,
da previdência, da assistência social.
Essas mulheres e homens que ousaram desafiar o padrão da heteronormatividade
narram durante os atendimentos sociais suas trajetórias de interdições aos direitos mais
                                                       
6
CF. Portaria Ministério da Saúde n.457, de 19/ 08/ 2008.básicos e as repercussões desse  não acesso às suas vidas, materializando-se, na
atualidade, em fragilidades no campo educacional, no campo do trabalho, da vinculação
previdenciária - que associados ao preconceito, tornam a arte de viver uma batalha
hercúlea.
De acordo com Louro (2000)  esta heteronormatividade está na base da ordem
social em que meninas e meninos são criadas/os e educadas/os; está no controle a que
todas as pessoas são sujeitas no que diz respeito à sua identificação como homem ou
como mulher. Constituem-se, assim, em exigências a serem cumpridas  em relação ao
que é esperado do gênero masculino e do feminino sendo estimuladas e celebradas em
meninos/as e adolescentes quando desempenham “normalmente” este papel  e
punidas/os, corrigidas/os quando expressões divergentes desse padrão se estabelecem
como é o caso, por exemplo, das amostras de afeto ou atração por pessoas do “mesmo
sexo”.
Esse  padrão é  produtor e reprodutor da  violência contra as/os jovens
identificadas/os como gays, travestis, transexuais, sendo estes dia a dia advertidas/os de
que a sociedade não respeitará suas “escolhas”.
É nesse sentido que as brutalidades são constituídas no  espaço escolar,
configurando-se como uma das interdições iniciais na vida da criança ou adolescente
cuja identidade de gênero não segue o padrão normativo e que irá ser a base de outras
tantas interdições, inclusive ao direito de permanecer na escola em muitos casos.
O atendimento aos sujeitos “Trans” no campo da saúde: a possível
construção da visibilidade de uma trajetória de violação de direitos.
Para fins desse estudo, nossa reflexão se pauta a partir da experiência de
atendimento de 01 homem e 16 mulheres transexuais entre o segundo semestre de 2011
e maio de 2012. Cabe destacar, que este quantitativo de pessoas não corresponde ao
numero de inscritos no programa, mas ao universo trabalhado por nós.
Durante o atendimento social são realizados estudos sociais tendo como
instrumentos, a entrevista em todos os casos e a visita domiciliar bem como
atendimento às famílias em alguns casos. Nessas entrevistas abordamos temas relativos
à escolaridade,  ao  emprego,  à  ocupação,  ao vínculo previdenciário, dentre outros.
Chamou-nos atenção, sobretudo, os relatos referentes ao grau de escolaridade e inserção
atual no mercado de trabalho. A sistematização das informações acerca dos usuários e
de tais demandas nos possibilita estabelecer estratégias de enfrentamento, articular ações de saúde com os recursos da rede  socioassistencial, procurando viabilizar a
integralidade e a intersetorialidade da assistência.
Apontamos a seguir  o universo por nós trabalhado  para a construção dessa
análise. Trata-se como já sinalizado de 17 usuários dos quais, 16 identificam-se com
gênero feminino e 01 com o gênero masculino.

                                                           Identidade de Gênero

Ao falarmos em identidade de gênero estamos nos referindo à maneira como
alguém se  sente,  se identifica, se apresenta para si e para os demais e como é
percebido/a como “masculino” ou “feminino” ou, ainda, uma mescla de ambos,
independente tanto do sexo biológico quanto da orientação sexual (Pereira, 2009).
A cultura ocidental moderna privilegia a diferença sexual como suporte
primordial e imutável da identidade de gênero. Segundo este ponto de vista, as
distinções anatômicas expressariam uma grande linha divisória que separaria homens e
mulheres, concebidos, nesses termos, como corpos, como sujeitos fundamentalmente
diferentes e, assim, destinados a abrigarem e a desenvolverem emoções, atitudes,
condutas e vocações distintas. Isto explicaria que a decisão de alguém de romper com
essa suposta determinação do sexo biológico, empreendendo uma transição do
masculino ao feminino ou vice-versa, cause escândalo e gere violência e perseguição
(Pereira, 2009).
A distinção radical e absoluta entre homens e mulheres coloca-se como
parâmetro da normalidade no que se refere ao gênero, adaptando qualquer ambiguidade
corporal e formando condutas coerentes com o ideal do casal heterossexual reprodutor.
Homens “normais” devem se sentir “masculinos”, e mulheres “normais” devem
se sentir “femininas”. Tudo aquilo que foge a esse parâmetro de normalidade tende a ser considerado “desvio”, “transtorno”, “perturbação”. Assim, homens afeminados,
mulheres masculinizadas, travestis (pessoas cujo gênero e identidade social são opostos
ao do seu sexo biológico e que vivem cotidianamente como pessoas do seu gênero de
escolha), transexuais (pessoas que se identificam com um gênero diferente daquele que
lhe foi imposto a partir do momento de seu nascimento, a ponto de muitas delas – mas
nem todas – desejarem e efetuarem modificações corporais radicais, como no caso da
cirurgia reparadora de mudança de sexo) e intersexuais (que apresentam sexo biológico
ambíguo no nascimento) são exemplos de “desviantes” em relação à norma de gênero
(Pereira, 2009).
São estes os sujeitos de nossa ação profissional cotidiana que durante os
atendimentos narram para nós suas trajetórias trazendo demandas para a intervenção
que apontam para a necessidade de envolvimento do Estado e da sociedade na busca da
cessação de tais violações bem como para sua pronta reparação. Urge a constituição de
políticas públicas inclusivas, a imediata qualificação dos profissionais e sensibilização
da sociedade para que, por exemplo, meninos e meninas que expressam sua sexualidade
de forma diferente do padrão normativo não tenham interrompido o seu direito de ter
acesso à escolarização formal.
Lionço (2012) aponta que  a escola tem a obrigação promover desde 1997 a
discussão da sexualidade em sala de aula. Isso está previsto nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, publicado pelo Ministério da Educação. De acordo com a pesquisadora, não
existem crianças gays, lésbicas ou transexuais. Segundo a autora, é o olhar adulto que
classifica de “homossexual” ou “transexual”, por exemplo, as práticas infantis de
conhecer seus corpos e de brincar de se vestir com roupas femininas ou masculinas.
Neste sentido, o adulto é que faz com que um menino se sinta inadequado ao brincar de
boneca.  O papel que a Escola assume nesse cenário pode ser visto como estratégico na
medida em que se constitui num local potencialmente explicitador e questionador das
complexas formas pelas quais as identidades culturais são construídas, articuladas,
experienciadas, transgredidas e re-articuladas no âmbito do social.

                                                                 Escolaridade:

O currículo escolar, portanto, é central na construção das diferenças e das
identidades. No Brasil, no âmbito do currículo escolar oficial, a Educação Sexual não é
uma disciplina obrigatória, mas sim uma temática a ser transversalizada nos diversos
conteúdos, no entanto, ainda tem sido conduzida através de um viés biologizante,
circunscrita às aulas de  ciências e a prevenção de gravidez e doenças sexualmente
transmissíveis.   Este  contexto marcado pelo silêncio dos profissionais da educação
diante dos abusos sofridos por alunos e alunas que “fogem” a regra constitui um
ambiente extremamente heteronormativo e discriminatório levando muitos deles a uma
expulsão silenciosa do ambiente escolar. Ilustrativo desta realidade foi a resposta de
uma transexual ao ser indagada sobre sua vivência escolar: “ um inferno. Um verdadeiro
inferno!”
Das 17 pessoas entrevistadas,  31% não completaram o  ensino fundamental,
enquanto 19%  não  completaram o ensino médio e 13% chegaram ao ensino superior
sem concluí-lo.
Diante dessa amostra ilustrativa de uma realidade em que fica visível a violação
dos direitos humanos é preciso entender em que medida a escola brasileira se configura
em um lugar de opressão, discriminação e preconceitos, no interior e em torno da qual
existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e
adultos LGBT, tanto estudantes quanto profissionais da educação (Cadernos SECAD,
MEC: 2007).
A violência homofóbica, nas suas mais diversas formas de manifestação, pode
dizer respeito a distintos aspectos da vida cotidiana escolar e das pedagogias aí
mobilizadas.  Além dos dados relativos à violência contra LGBT em todo o país, recentes estudos nos colocaram diante de dados e análises que enfatizam a necessidade
de um tratamento mais adequado para o assunto em nossas escolas (Cadernos SECAD,
MEC: 2007). A falta de solidariedade por parte de profissionais ou da instituição escolar
diante das mais corriqueiras cenas de assédio moral contra estudantes LGBT anima
agressores/as a continuarem agindo (HUMAN WATCH, 2001) IDEM.
Embora produza efeitos sobre todo o alunado, a homofobia incide mais
fortemente  nas trajetórias educacionais e formativas e nas possibilidades de inserção
social de milhões de jovens LGBT. Além disso, a homofobia tende a privar cada um/a
desses/as  jovens de direitos mais básicos, pois, por exemplo:  afeta o seu bem-estar
subjetivo (RANGEL, 2004a e 2004b); produz insegurança, estigmatização, segregação e
isolamento;  enseja invisibilidade e visibilidade distorcida;  conduz à maior
vulnerabilidade (em relação  a chantagens, assédios, abusos);  incide no padrão das
relações sociais entre estudantes e destes com os/as profissionais da educação; afeta as
expectativas quanto ao sucesso e ao rendimento escolar; tumultua o processo de
configuração identitária e a construção da auto-estima; dificulta a permanência na
escola; prejudica o processo de inserção no mercado de trabalho; influencia a sua vida
socioafetiva, entre outros (JUNQUEIRA, 2006).
Inegavelmente, os casos mais evidentes têm sido os vividos pelas travestis e
pelos  transexuais que têm suas possibilidades de inserção social seriamente
comprometidas, na maioria dos casos por  verem-se desde logo privadas/os do
acolhimento afetivo em face às suas experiências de expulsões e abandonos por parte de
seus familiares e amigos (DENIZART, 1997; PERES, 2004 e STECZ, 2003). Com suas
bases emocionais fragilizadas, elas, na escola, têm que encontrar forças para lidar com o
estigma e a discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas, professores/as,
dirigentes e servidores/as escolares. Não raro, elas enfrentam obstáculos para se
matricularem na rede pública,  participarem das atividades pedagógicas,  terem suas
identidades minimamente respeitadas,  fazerem uso dos espaços disponíveis na
instituição escolar (banheiros, por exemplo)  e conseguirem preservar sua integridade
física. Diversas pesquisas têm revelado que, no segmento LGBT, as travestis constituem
a parcela com maiores  dificuldades de  permanência nas escolas e de inserção no
mercado de  trabalho, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico
(Cadernos SECAD, MEC: 2007).
A inexistência de um arsenal consistente de dados oficiais acerca da homofobia
nas  escolas brasileiras não significa a  inexistência do problema, mas seu contrário: a homofobia institucional produziu, até agora, entre formuladores/as de políticas
educacionais,  uma atitude de indiferença ou de pouca sensibilidade em relação ao
quadro de discriminação e violência a que estudantes estão submetidos/as.
Pouco se sabe, por exemplo, a respeito do desempenho acadêmico, das
ocorrências de agressão verbal e física no ambiente escolar  e da evasão ou abandono
escolar associada a estudantes homossexuais, travestis e transexuais (Cadernos SECAD,
MEC: 2007).
Um desdobramento dessa realidade é  apontado no gráfico a seguir quando
observamos que 65% das pessoas atendidas revelam não ter profissão. Dentre estas
encontramos relatos de não inserção no mercado de trabalho em função  tanto do
preconceito quanto da baixa escolarização formal. Essas pessoas, em geral tem uma
rede sócio familiar extremamente frágil, não tendo a quem recorrer nos momentos de
maiores dificuldades financeiras.  Em função disso, temos exemplos de pessoas que
viveram na condição de moradores de rua, que vivenciaram a prostituição por absoluta
falta de alternativa.
Dados da ANTRA (Articulação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam
que  cerca de 90% das travestis tem nos programas sexuais sua atividade profissional.
Este número referente às travestis reflete a dificuldade que tanto estas quanto as/os
transexuais têm para sua inserção formal no mercado de trabalho, fruto ora do
preconceito ora da baixa escolaridade que apresentam.

                                                                        Profissão:

As faltas de escolaridade e de profissionalização estão interligadas e têm como
consequência uma inserção precária no mercado de trabalho, não se descartando o
trabalho sexual. São vários os motivos que dificultam o acesso ao trabalho formal sendoo primeiro deles a baixa escolaridade, seguido da discriminação e da necessidade de
qualificação. Dentre as pessoas atendidas em nosso serviço existe uma minoria que
conseguiu se qualificar, mas dentre estas, apenas uma trabalha na própria profissão,
ressaltando-se aqui o fato de a mesma ser funcionária pública.
Assim, apesar do registro de alguma conquista no papel e lugar  social
ocupado por este grupo, ainda é regra o fato de que travestis e transexuais  ainda
necessitam da vinculação ao trabalho de prostituição, tanto pelo retorno financeiro
quanto pela possibilidade de aceitação e valorização entre seus pares, o que não
acontece em relação  à sociedade homofóbica que as discrimina constantemente
interditando-as de transitarem e ocuparem livremente os espaços societários que, em
principio, é livre a todos e todas.
Para a maioria das travestis, nada resta senão o trabalho sexual com o próprio
corpo, no entanto, há que se demarcar que no caso do Brasil o trabalho de prostituição
desenvolvido pelas travestis é de extremo risco. Estatísticas apontam que, em 2010,
foram assassinadas 104 travestis e transexuais. Destas, 84% das vítimas eram "travestis
de pista", assassinadas na rua, das quais 53% foram atingidas por tiros, 28% espancadas
e 19% morreram esfaqueadas.  (Fonte: sítio UOL/Grupo Gay da Bahia).
O gráfico a seguir aponta as formas de ocupação das pessoas atendidas em nosso
serviço. Temos o relato de pessoas que já se prostituíram e já viveram nas ruas, dado o
grau de precariedade de suas relações familiares e dificuldade de inserção profissional,
no entanto, na atualidade todas relatam não viver mais da prostituição.  A ocupação
mais corriqueira é aquela associada aos serviços de beleza e aos trabalhos domésticos,
mas alguns casos chamam a atenção, como por exemplo, o fato de termos um professor
universitário, um técnico de enfermagem, um técnico de produção desempenhando
ocupações muito distantes de sua formação e qualificação original.

                                                                  Ocupação:

Caso particular é o de um professor, branco, jovem, pós-graduado, autor de livro
publicado e que atualmente desempenha a função de tosador de animais de estimação
em função de não conseguir trabalhar em sua profissão por motivo de preconceitos. A
dificuldade de formalizar a documentação de mudança de nome é um obstáculo
importante, uma vez que expõe uma situação que a pessoa nem sempre quer divulgar,
mas o que impera neste caso é a impossibilidade da sociedade lidar com a diversidade.
Ao ser indagado sobre sua trajetória  de vida, sobretudo a experiência com a
escola, esse jovem relata que:
“Não se enturmava na escola, ficava isolado e preferia ficar lendo. Tinha no
máximo duas amigas. Na adolescência usava roupas unissex e não usava acessórios
ditos femininos”. Na ocasião em que lecionou na universidade declara que “tinha bom
relacionamento com os alunos, porém com a coordenação da faculdade houve
problemas”.
Percebe-se  que esta é uma questão muito complexa: quando os alunos/as
conseguem “sobreviver” a barreira do preconceito nas escolas, quando heroicamente
vencem a invisibilidade com que são tratados pela instituição, eles se deparam  com
outra barreira, o da inserção profissional.  Vale destacar aqui que apenas uma pessoa
atendida por nosso serviço está inserida na profissão na qual se qualificou e esta é uma
funcionária pública.
Tal situação terá repercussões sobre a inserção socioeconômica e renda desses
sujeitos comprometendo acentuadamente a fluição de seus direitos mais elementares e
os colocando em situação de dependência a terceiros e/ou as escassas e precárias
políticas sociais públicas. A título de ilustração, provocamos o leitor  no sentido de
convidá-lo a refletir sobre onde se encontra trabalhando o travesti e o transexual? Todos
nós vamos ao shopping, aos supermercados, abastecemos o carro, vamos à escola, a
faculdade, tomamos um taxi, um ônibus, enfim... Circulamos nos mais diversos espaços
urbanos. Nestes espaços é comum encontrarmos travestis e transexuais exercendo suas
atividades laborativas normalmente?

                                                                           Renda:

Dos usuários entrevistados pela equipe de serviço social durante seus
atendimentos sociais, 35% apresentam renda variável. São pessoas que trabalham como
diaristas, pedreiros, manicures, vendedoras entre outras ocupações e que não tem
certeza se terão o rendimento suficiente no fim do mês para arcar com suas despesas. Os
programas sociais governamentais têm focalizado suas ações no atendimento mínimo as
necessidades básicas das famílias, tendo a mulher, sobretudo com filhos, como principal
referência, o que dificulta ainda mais a já precária situação dessas pessoas, que além dos
gastos que qualquer pessoa tem, ainda precisam custear o tratamento hormonal que não
é garantido pelo SUS.
Dentre  essas pessoas atendidas no serviço,  24% percebem o salario mínimo,
18% não contam com nenhuma renda, sobrevivendo de ajuda de terceiros (pais ou
companheiros) o que configura para nós uma situação de bastante fragilidade, sobretudo
por que como já se disse são quase que inexistentes ações afirmativas do poder público
no sentido de fortalecer essas pessoas em suas possibilidades de inserção no mercado de
trabalho e qualificação profissional, recrudescendo uma trajetória de violação de
direitos que começou ainda na infância, quando muitos desses sujeitos foram levados a
expulsão do ambiente escolar, sem que nada fosse feito por parte da instituição e seus
educadores.

                                                               Vínculo previdenciário:

Como resultante das questões já trabalhadas anteriormente, temos entre as
pessoas atendidas no programa uma vinculação previdenciária extremamente precária.
59% dessas pessoas não tem nenhum vinculo com o INSS tendo como resultante um
cenário bastante adverso do ponto de vista da segurança e amparo social. Boa parte
dessas pessoas não tem filhos, seus vínculos familiares estão estremecidos ou rompidos,
as políticas públicas não as alcançam.  Seus corpos, naturalmente, não aguentarão
serviços pesados e precários à medida que forem envelhecendo.  Assim, temos diante de
nós o grande desafio de lutar pela visibilidade das questões sociais e violações de
direitos enfrentados por essas pessoas que por viverem em uma sociedade que não
admite a diversidade, são levadas a um silencioso holocausto.
Conforme vimos acima nos dados apresentados dos usuários atendidos pelo
serviço social 31% não terminaram o ensino fundamental e outros 19% não concluíram
o ensino médio. Isso equivale a 50%, ou seja, a metade dos usuários não passou do 2º
grau. Diante disso percebemos que a concluir os estudos é uma árdua tarefa quando se
sofre discriminação, rechaço e preconceito. Aos que 13% que terminaram o ensino
médio e adentraram no ensino superior constatamos que os mesmos não concluíram a
graduação. A soma dos 31% com os 19% que não passaram do ensino médio indica um
percentual de 50% dos usuários que não concluíram os estudos. Somando esses 50%
com os 13% que não terminaram a faculdade chegamos a 63% dos usuários sem
formação profissional. Isso se confirma quando comparamos com o gráfico no qual
65% dos entrevistados afirmam não terem uma profissão.
Obviamente os rebatimentos da não-profissionalização recaem sobre a renda dos
entrevistados: 18% declaram não possuírem renda, 24% aufere rendimento de um salário mínimo e 35% afirmam ter renda variável, ou seja, estando sujeitos a quedas de
rendimentos econômicos mensais.
Diante dessa constatação mais um dado ratifica a fragilidade das condições em
que os usuários vivenciam suas ocupações: 59% não possui vínculo previdenciário.
Mais da metade dos entrevistados não tem direito a auxílios previdenciários bem como
a aposentadoria. Dessa forma são pessoas desprotegidas do ponto de vista trabalhista
pois por mais que não possuam qualificação e/ou formação profissional exercem algum
tipo de atividade, mas totalmente na informalidade sem nenhum tipo de segurança nos
momentos de impossibilidade e/ou incapacidade para o trabalho.
Considerações Finais
Vivenciamos na atualidade uma regressão das Políticas Pública no país com seu
desfinanciamento, o redirecionamento do fundo público para o orçamento fiscal com
grandes cortes nos gastos sociais em nome da crise fiscal. A Seguridade Social
brasileira assegurada pela Constituição Federal de 1988, constituída pela Saúde,
Assistência Social e Previdência Social, preconiza a expansão dos direitos de cidadania,
universalidade, justiça social e a atuação do Estado na provisão da atenção social.
Abordando de forma específica o SUS - também garantido pela Carta Constitucional – a
atenção à saúde deve ser integral: reconhecimento de todo indivisível que cada pessoa
representa, tendo como  consequência a não-fragmentação da atenção, considerando
fatores econômicos, sociais e culturais como determinantes da saúde. Esse modelo de
atenção à saúde que o texto legal prevê possui uma concepção abrangente de saúde que
deve estar sempre orientada aos direitos humanos. Assim o Estado deve estar presente
para garantir a existência de Políticas Sociais, não só no campo da saúde, mas em todas
as esferas a fim de garantir que todos os cidadãos tenham acesso à educação, moradia,
trabalho, renda, cultura e lazer.
Porém sob a égide de um modelo econômico o estado brasileiro tem retraído sua
atuação no campo social negando a Política Social uma vez que não a materializa e
quando a faz suas ações se dão através de políticas focalizadas e fragmentadas. O que se
tem como resultado é o aumento da pobreza, das desigualdades sociais, do desemprego
e da precarização do trabalho via informalidade. Toda sociedade brasileira sofre os
rebatimentos da ausência/precariedade de políticas, mas diante dos dados acima
apresentados temos o recorte da população ainda mais invisível para nossos
governantes. A inexistência de ações voltadas para o público alvo desse trabalho vai de
encontro ao que está preconizado na carta magna de nossa nação  em que  um dos princípios tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Onde está a garantia
da dignidade de pessoas que sofrem sistematicamente preconceitos sendo obrigadas a
deixarem a escola? Que não conseguem trabalhar porque não correspondem aos padrões
impostos? Esses dados revelam mais do que uma sociedade que não sabe como lidar
com isso com tratamentos violentos, preconceituosos que excluem essas pessoas, mas
um Estado extremamente omisso e que se desresponsabiliza no que concerne às ações
que visem o enfrentamento dessas questões.
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