sábado, 21 de julho de 2012

A experiência transexual no contexto hospital




(versão preliminar)

Dra. Berenice Bento
(pesquisadora associada do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília-Brasil)
 

O objetivo desse artigo é apresentar e problematizar os critérios definidos nos
protocolos médicos para a produção do diagnóstico médico sobre os/as demandantes às
cirurgias de transgenitalização. Dividiremos as discussões em duas partes. Na primeira, nos
aproximaremos das definições consagradas nos documentos oficiais
1
 que determinam os
procedimentos que se devem seguir para a produção do diagnóstico. Na segunda, veremos
como estes procedimentos são vivenciados no quotidiano hospitalar pelos/as transexuais.
Antes, porém, faremos um breve apartado histórico com o objetivo de contextualizar a
problemática transexual
2
.
1. Uma aproximação histórica
Em 1910, o sexólogo Magnus Hirschfeld utilizou o termo “transexualpsíquico” para se
referir a travestis fetichistas (Castel, 2001). Este termo voltou a ser utilizado em 1949, quando
Cauldwell publica um estudo de caso de um transexual que queria se masculinizar.  Neste
trabalho são esboçadas algumas características que viriam a ser consideradas como exclusivas
dos/as transexuais. Até então, não havia uma nítida separação entre transexuais, travestis e
homossexuais.
 Na década de 1950, começam a surgir publicações que registram e defendem a
especificidade do “fenômeno transexual”. Estas reflexões podem ser consideradas como o
início da construção do “dispositivo da transexualidade”

3
.
A articulação entre os discursos teóricos e as práticas reguladoras dos corpos, ao longo
das décadas de 1960 e 1970, ganhou visibilidade com o surgimento de associações
internacionais que se organizam para produzir um conhecimento específico para a
transexualidade e para discutir os mecanismos de construção do diagnóstico diferenciado dos
gays, lésbicas e travestis. Nota-se que a prática e a teoria caminham juntas. Ao mesmo tempo
em que se produz um saber específico, propõem-se os modelos apropriados para o
“tratamento”.
 Em 1953, o endocrinologista alemão radicado nos Estados Unidos, Harry Benjamin,
retoma o termo utilizado por Cauldwell, apontando a cirurgia como a única alternativa
                                                             
1
 São considerados documentos oficiais os formulados pelas Associação Internacional de Disforia de Gênero
Harry Benjamin e os da Associação Americana de Psiquiatria, conforme será discutido mais adiante.
2
 Esse artigo é uma versão  do capítulo "A invenção do transexual" da minha tese de doutorado "A reinvenção do
corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual".
3
 Segundo  Foucault, dispositivos  "são formados por um conjunto heterogêneo de práticas discursivas e não
discursivas que possuem uma função estratégica de dominação. O poder disciplinar obtém sua eficácia da
associação entre os discursos teóricos e as práticas reguladoras". (Foucault, 1993:244) Nos últimos cinqüenta
anos observou-se uma crescente produção de pesquisas que visam definir critérios e parâmetros para a definição
do/a "verdadeiro transexual", ou seja, aquele/a que poderá submeter-se à cirurgia de transgenitalização. Referime à "dispositivo da transexualidade" a esse conjunto de saberes que interagem nas equipes médicas
responsáveis em produzir um diagnóstico sobre os demandantes às cirurgias.2
terapêutica possível para os/as transexuais, posição que se contrapunha aos profissionais da
saúde mental, sempre  reticentes a intervenções corporais como alternativas terapêuticas,
consideradas por muitos psicanalistas como mutilações. No artigo Transvestism and
Transsexualism, Benjamin (1953) ataca violentamente todo tratamento psicoterapêutico e
sobretudo psicanalítico da transexualidade e do travestismo.
John Money, professor de psicopediatria do Hospital Universiestário John Hopkins, de
Nova York, em 1955, esboçou suas primeiras teses sobre o conceito de “gênero” apoiado na
Teoria dos Papéis Sociais, do sociólogo Talcott Parsons, aplicada à diferença dos sexos.  A
conclusão a que chegara Money em 1955 não poderia ser, aparentemente, mais
revolucionária: o gênero e a identidade sexual seriam modificáveis até a idade de 18 meses.
4
As teses de Money, no entanto, não eram da determinação do social sobre o natural,
mas de como o social, mediante o uso da ciência e das instituições, poderia fazer com que a
diferença dos sexos, que Money considerava natural, fosse assegurada. Para Money,  o
desenvolvimento psicossexual é uma
continución del desarrollo embionário del sexo. Único entre los
diversos sistemas funcionales del desarrollo embrionário, el
sistema reproductor es sexualmente dimorfo. Así, también, en el
subsiguiente desarrollo psíquico y la conducta existe um
dimorfismo sexual (Money, s/d:21).
Para Money, a aparência dos genitais era fundamental para o desenvolvimento da
heterossexualidade, pois “as bases mais firmes para os esquemas de gênero são as diferenças
entre os genitais femininos e masculinos e o comportamento reprodutor, uma base que nossa
cultura luta para reprimir nas crianças. ”(apud Colapinto, 2001:109)
Os processos de construção do canal vaginal nas meninas intersexuais não eram
simplesmente destinados à produção de um órgão: dirigiam-se sobretudo à prescrição das
práticas sexuais, uma vez que se define como vagina única e exclusivamente o orifício que
pode receber um pênis adulto. Quando Money formulou suas teses sobre a estrutura
naturalmente dimórfica do corpo e a heterossexualidade como a prática normal desse corpo,
não previu que algumas destas meninas intersexuais seriam lésbicas e reivindicariam o uso
alternativo de seus órgãos, conforme apontou Preciado (2002).
As formulações sobre a pertinência de intervenções  nos corpos ambíguos dos
intersexos e dos transexuais terão como matriz comum a tese da heterossexualidade natural
dos corpos. Embora as teorias de Money tivessem como foco empírico principalmente as
cirurgias de definição de um sexo em bebês hermafroditas, suas teses terão um peso
fundamental na formulação do dispositivo da transexualidade, principalmente às teses da
                                                             
4
 Durante décadas, o modelo de intervenção cirúrgica em bebês hermafroditas, respaldo nas teorias de Money
conseguiu um considerável apoio da comunidade científica internacional. Os recursos  terapêuticos que Money
usava para produzir em crianças cirurgiadas “comportamentos adequados” a seu sexo, principalmente referentes
ao controle de suas sexualidades, passaram a ser denunciados por militantes de associações de intersexos,  que
lutavam contra a prática  comum em hospitais americanos de realizar cirurgias em crianças que nasciam com
genitálias ambíguas. Colapinto (2001) recupera a história dos gêmeos Brenda e Brian, um dos muitos casos sob a
orientação do Dr. Money. Brenda, aos oito meses, teve o seu pênis cortado numa circuncisão mal feita e foi
submetida a uma cirurgia para a construção de uma vagina pelo Dr. Money. Ao longo dos anos, nas sessões de
psicoterapia entre o irmão e a irmã utilizavam-se de várias técnicas para produzir o comportamento sexual
adequado para uma menina. Para  que Brenda desenvolvesse a heterossexualidade, Money  obrigava Brenda “a
ficar de gatinhas no sofá e Brian [seu irmão] colocar o pênis no meio das nádegas dela. Variações dessa terapia
incluíam Brenda deitada com as pernas abertas e Brian deitado sobre ela.” (2001:109) Quando começaram a
ser desenvolvidas essas simulações de cópula, Brenda e Brian tinham seis anos. 3
HBIGDA (Associação Internacional Harry Benjamin de Disforia de Gênero). Conforme o
próprio Money,
até 1966, o conceito de gênero havia sido aplicado ao
hermafroditismo por Money (1955) em expressões como ‘papel
de gênero’ ou ‘identidade de gênero’ ou ‘identidade/função de
gênero’. O conceito de identidade de gênero ficou
inseparavelmente ligado à transexualidade quando, em 1966, o
Hospital Johns Hopinks anunciou a formação de sua Clínica de
Identidade de Gênero e a sua primeira cirurgia de mudança de
sexo. (Money, apud Ramsey,  1996:17)
 Duas grandes vertentes de produção de conhecimento irão se encontrar na temática da
transexualidade: o desenvolvimento de teorias sobre o funcionamento endocrinológico
5
 do
corpo e as teorias que destacaram o papel da educação na formação da identidade de gênero.
Estas duas concepções produziram explicações distintas para a gênese da transexualidade e,
conseqüentemente, caminhos próprios para o seu “tratamento”. No entanto, a disputa de
saberes não constitui-se em impedimento para que uma visão biologista e outra,
aparentemente, construtivista trabalhessem juntas na oficialização dos protocolos e nos
centros de transgenitalização. Money, por exemplo, que sempre destacou a importância da
educação para a formação da identidade de gênero, defendia a hipótese  “ainda por ser
investigada, de que a origem da transexualidade, está em uma anomalia cerebral que altera a
imagem sexual do corpo de forma a torná-la incongruente com o sexo dos genitais de
nascimento” (Money, apud Ramsey,  1996:19).
A década de 1960 será o momento em que as formulações começarão a ter
desdobramentos práticos, principalmente com a organização de Centros de Identidade de
Gênero nos Estados Unidos, voltados para atender exclusivamente aos transexuais.
Em 1969, realizou-se em Londres o primeiro congresso da Harry Benjamin
Association que, em 1977, mudaria seu nome para Harry Benjamin International Gender
Dysphoria Association (HBIGDA)
6
. A transexualidade passou a ser considerada como uma
“disforia de gênero”
7
, termo cunhado por John Money em 1973.
8
                                                             
5
 O cientista Leopold Ruzicka (apud Castel, 2001:14), em 1934, sintetizou pela primeira vez a androsterona a
partir do colesterol. Dois anos depois, conseguiu-se sintetizar o estradiol, que serviu para a produção das
primeiras pílulas anticoncepcionais e as primeiras autoministrações de hormônios para os/as transexuais.
6
 Parte das subvenções para as pesquisas da HBIGDA provinham da Erickson Educational Foundation. A
HBIGDA realiza seus congressos bienalmente. Para o acompanhamento dos documentos e da história da
HBIGDA, consultar: http://www.hbigda.org,  http://www.symposion.com/ijt/benjamin    e
http://www.gendercare.com
7
 Segundo  King (1998),  a utilização do nome “disforia” teve como objetivo demarcar e delimitar o campo do
saber médico com a popularização que o termo “transexualismo” adquiriu. A HBIGDA define “disforia de
gênero” como “aquele estado psicológico por meio do qual uma pessoa demonstra insatisfação com o seu sexo
congênito e com o papel sexual, tal como é socialmente definido, consignado para este sexo, e que requer um
processo de redesignação sexual cirúrgica e hormonal”. (Ramsey, 1996:176). No Código Internacional de
Doenças (CID), a transexualidade aparece no capítulo “Transtornos de personalidade da Identidade Sexual”
assim definido:  “Transexualismo: trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto.
Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu
próprio  sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal
a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo  desejado.“
(http://www.psiqweb.med.br/cid/persocid.html). Ou seja,  as definições da HBIGDA e do CID são basicamento
as mesmas. A utilização do nome “disforia”, parece  também ter tido como objetivo demarcar campos de disputa
entre os saberes  internos ao dispositivo da transexualidade.4
A HBIGDA legitimou-se como a responsável pela normatização do “tratamento” para
as pessoas transexuais em todo o mundo. O livro El fenómeno transexual, de Harry Benjamin,
publicado em 1966, forneceu as bases para se diagnosticar o “verdadeiro” transexual. Neste
livro, são estabelecidos os parâmetros para avaliar se as pessoas que chegam às clínicas ou
aos hospitais solicitando a cirurgia são “transexuais de verdade”.
2. A construção de um campo conceitual específico para a transexualidade
A desconstrução do caráter patologizante atribuído pelo saber oficial à experiência
transexual deve começar pela problematização da linguagem que cria e localiza os sujeitos
que vivem esta experiência.
“Transexualismo” é a nomenclatura oficial
9
 para definir as pessoas que vivem uma
conflito entre corpo e subjetividade. O sufixo  “-ismo” é denotativo de condutas sexuais
perversas, como, por exemplo, “homossexualismo”. Ainda na mesma lógica da patologização,
o saber oficial nomeia as pessoas que passam pelo processo transexualizador de mulher para
homem de “transexuais femininos” e de homem para mulher de “transexuais masculinos”. Por
esta lógica, independente do desejo de uma mulher biológica, que passa por todos os
processos para construção de signos corporais identificados socialmente como pertencentes ao
masculino, continuará sendo uma “transexual feminino”, o que, se pensarmos no conteúdo da
experiência transexual e não na lógica oficial, parece uma contradição, uma vez que esta
experiência nega a precedência explicativa do sexo cromossomático para suas condutas. Ao
definí-lo como “feminino” está-se negando a legitimidade da existência social, uma vez que a
nomenclatura retorna à essencialização que a própria experiência nega e recorda a todo tempo
que ele nunca será um homem.
Quando uma transexual feminina afirma: “eu sou uma mulher. Tenho que ajustar meu
corpo”, e um médico lhe nomeia como “transexual masculino”, estará citando as normas de
gênero que estabelecem que a verdade do sujeitos está no sexo. Embora os movimentos
sociais de militantes transexuais e algumas reflexões teóricas afirmem que a questão de
identidade é o que deve prevalecer na hora da nomeação, a linguagem científica, através do
batismo conceitual, retomou a naturalização das identidades.  O desdobramento dessa
concepção é a patologização da experiência.
Utilizo “transexuais femininas” ou “mulheres transexuais” para nos referirmos aos
sujeitos que se definem e se sentem como mulheres e por “transexuais masculinos” ou
“homens transexuais” os que se sentem e se definem enquanto pertencentes ao gênero
masculino.  Quando se afirma que os critérios aqui estabelecidos partem das subjetividades
dos próprios sujeitos e de suas narrativas, não se está utilizando o fato de terem se submetido
a cirurgia ou o desejo em realizá-la como o critério para esta nomeação, o que nos distancia
da posição oficial.
O trabalho de  campo
10
 revelou que há uma pluralidade de interpretações e de
construções de sentidos para os conflitos entre o corpo e a subjetividade nessa experiência. O
que faz um sujeito afirmar que pertence a outro gênero é um sentimento; para muitos
transexuais a transformação do corpo através dos hormônios já é suficiente para lhes garantir
um sentido de identidade,  não chegando a reivindicar as cirurgias.
                                                                                                                                                                                                       
9
 Embora a HBIGDA utilize “disfóricos de gênero”, muitos dos seus membros continuam a utilizar
“transexualismo” como sinômimo.
1 0
 Ao longo de 18 meses (janeiro de 2001 a julho de 2002) entrevistei transexuais que esperavam para realizar a
cirurgia no Hospital das Clínicas de Goiânia/Brasil. Para uma discussão sobre os encaminhamentos e
desdobramentos da pesquisa  ver, Bento (2003).5
3. Quando dizer é fazer
A discussão sobre o que chamamos de “batismos conceituais” remete às reflexões de
Austin (1990) sobre a capacidade de a linguagem criar realidades. Para este autor, é
necessário apontar que a linguagem não tem somente a função de descrever a realidade,
devendo-se compreendê-la como uma modalidade produtora de realidades. No caso da
linguagem científica, a tarefa de desvelamento desta função é consideravelmente complexa,
pois sua eficácia consiste na idéia da suposta capacidade da ciência de descrever uma dada
realidade de forma neutra.
 Quando Austin afirma que se deve examinar as palavras vinculando-as a
determinadas situações, está propondo um deslocamento do eixo de análise da palavra como
unidade por si só geradora de sentido para relacioná-la aos contextos em que são geradas. Esta
proposição insere-se em sua tese de que há uma classe de palavras que não representa a
realidade, mas lhe dá vida.  Vejamos alguns exemplos sugeridos por Austin.
Quando se declara:  “aceito esta mulher como minha legítima  esposa”,   “batizo este
navio com o nome de Rainha Elizabeth”,  “aposto cem cruzados como  vai chover” (Austin,
1990:24), está-se fundando uma expectativa através do ato da fala.  Austin chamará estas
expressões ou classe de palavras de “performativas”
11
,  caracterizando-se pela sua força
criadora de realidades.
Para Austin, nem todas as declarações verdadeiras ou falsas são descrições, preferindo
considerá-las como constatativas (por exemplo, quando alguém diz: “tem um livro em cima
da mesa”). Diferentemente das constatativas, há um tipo de expressão que se disfarça. Esse
tipo, porém, não se disfarça necessariamente como declaração factual, descritiva ou
constatativa. O que pode parecer estranho é que isso ocorre exatamente quando assume a sua
forma mais explícita. Quando se diz  “aceito” não se está descrevendo um casamento, mas
casando-se. O ato da linguagem, nessa perspectiva, não é uma representação da realidade, mas
uma interpretação, construtora de significados.
Austin chamou esta característica da linguagem de “capacidade performática”. Butler
(1993 e 1999) fará uma leitura da obra de Austin vinculando-a à suas reflexões sobre as
identidades de gêneros. A teoria da linguagem de Austin e a da citacionalidade de Derrida
(1991) articulam-se com outras contribuições teóricas, entre elas a da genealogia do saber e
do poder, de Foucault (1993, 2001 e 2002), para propor uma teoria sobre os processos de
construção dos gêneros.
O insulto seria um dos atos performativos mais recorrentes de produção das
subjetividades de gênero.  Para Butler (2002), estes atos são modalidades de um discurso
autoritário, uma vez que estão envolvidos em uma rede de autorizações e castigos. O poder
que tem o discurso para realizar aquilo que nomeia está relacionado com a performatividade,
ou seja, com a capacidade de os atos lingüísticos citarem reiteradamente as normas de gênero,
fazendo o poder atuar como e no discurso
12
.
Quando o saber médico nomeia a experiência transexual a partir da naturalização, está
citando as normas que fundamentam e constroem os gêneros a partir do dimorfismo.  Quando
                                                             
1 1
 O termo “performance” é derivado do  inglês to perform , verbo correlato do substantivo ação e indica que, ao
emitir uma evocação está  se realizando uma ação, não sendo considerado como equivalente a dizer algo.
1 2
 É importante destacar que há muitas formas de proferir o insulto, inclusive, institucionalmente. Na língua
inglesa as qualificações de gênero são muito específicas e rígidas. Os pronomes He e She (ele e ela) qualificam
apenas seres humanos e a tudo mais está reservado o pronome it. Em alguns estados americanos (na Flórida e no
Missouri, por exemplo) os/as transexuais são classificados como  It. Para o Estado eles/as simplesmente não
existem. Sobre as demandas jurídicas e as contendas por herança que essa nomeação tem gerado, ver a  Revista
Isto é (6/3/2002).Quando afirmamos que a preocupação dos/as transexuais é lutar pela inteligibilidade estamos
nos referindo a reivindicação de ascenderem à condição humana. 6
se define as características dos transexuais, universalizando-as, determinam-se padrões para
avaliação da verdade, gerando hierarquias que se estruturam a partir de exclusões.
Conforme propôs Butler, onde há um eu que enuncia, produzindo um efeito no
discurso, existe um discurso que o precede e possibilita a existência desse “eu”.
13
 Quando se
diz “transexual”, não se está descrevendo uma situação, mas produzindo um efeito sobre os
conflitos do sujeito que não encontra no mundo nenhuma categoria em que se classificar e a
partir disso buscará “comportar-se” como “transexual”.
O saber médico quando diz “transexual” está citando uma concepção muito específica
do que seja um/a  transexual.  Esse saber médico apaga a legitimidade da pluralidade, uma
vez que põe em funcionamento um conjunto de regras, consubstanciado nos protocolos, que
visam a encontrar o/a “verdadeiro transexual”. O ato de nomear o sujeito de transexual
implica em pressuposições e suposições sobre os atos apropriados e os não-apropriados.
4. A construção do diagnóstico diferenciado
O diagnóstico da transexualidade é realizado a partir de uma exaustiva avaliação, que
inclui um histórico completo do caso, testes psicológicos e sessões de terapia.
O diagnóstico e o  “tratamento” da transexualidade adotados nas comissões de gênero
ou nos programas de transgenitalização são baseados em dois documentos: nas  Normas de
Tratamento da HBIGDA e no  Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais
(DSM)
14
, da Associação Psiquiátrica Americana (APA).
A APA passou a incluir a transexualidade no rol de “Transtornos de Identidade de
Gênero” em sua terceira versão (DSM-III), em 1980, mesmo ano em que se oficializou a
retirada da homossexualidade deste documento
15
. A transexualidade aparece na nova seção
sobre “Distúrbios de Identidade de Gênero”, junto com “Distúrbios de Identidade de Gênero
da Infância” e “Distúrbios de Identidade de Gênero Atípica”. Esse documento segue, ao nosso
ver, as concepções de Robert Stoller; e as normas de tratamento da HBIGDA as formuladas
por Harry Benjamin.
                                                             
1 3
 Butler (1997) analisa as “Novas diretrizes políticas sobre os homossexuais no exército” americano, publicadas
em 19 de junho de 1993, nas quais se estabelecem que a orientação sexual não será um obstáculo a menos que o
militar assuma  publicamente sua condição. Segundo Butler, as palavras  ‘sou homossexual’ não só são
descritivas: realizam o que descrevem, não só no sentido de que constituem ao emissor como homossexual,
como também constituem o enunciado como conduta homossexual. Ou seja,  o militar que fizer referência à sua
condição homossexual incorrerá em conduta homossexual, o que será penalizado com a exclusão. Declarar-s e
homossexual não é apenas uma representação de sua conduta, uma conduta ofensiva, mas a própria conduta.
Tanto as mulheres quanto os homens não podem falar de sua homossexualidade porque isto significaria pôr em
perigo a matriz heterossexual que assegura a subordinação do gênero. E no caso dos homens explicitaria a
homossociabilidade que coesiona  o mundo masculino.  A palavra, então, se converte em um ‘ato’ na medida em
que seu proferimento circunscreve o social e o segredo e o silêncio, pilares que garantem a reprodução dos
modelos hegemônicos. Daí, as políticas  queer se caracterizarem pela explicitação dos insultos, convertendo-os
em elementos para construção de posições identitárias, além de outras formas de atuações políticas concretas,
entre elas, manifestações públicas que visibilizam carícias e afetos entre os gays e as lésbicas, objetivando
quebrar os silêncios, os segredos legitimadores das exclusões.
1 4
 A  sexta versão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) encontrá-se disponível, em
espanhol, na home-page http://www.humano.ya.com/transexualia/.
1 5
 A American Psychiatric Association, em 1973, após grandes debates e conflitos, decidiu por um voto retirar a
homossexualidade do rol da patologias listados no DSM-III. A luta dos movimentos gay e lésbico americano
pela despatologização das sexualidades levou a mudança da posição oficial. 7
O processo transexualizador é composto pelas exigências que os Programas de
Redesignificação
16
 definem como obrigatórias para os/as “candidatos/as”.  Os protocolos irão
concretizar essas obrigatoriedades quanto ao tempo de terapia, à terapia hormonal, ao teste de
vida real, aos testes de personalidade, além dos exames de rotina. Se o/a “candidato/a”
conseguir cumprir todas as etapas e exigências estabelecidas, estará apto a submeter-se à
cirurgia de transgenitalização.
Tempo de terapia
Todo/a “candidato/a” deve submeter-se a um período de terapia. Recomenda-se que
este tempo seja o suficiente para que não pairem dúvidas na equipe quanto aos resultados e
que não haja arrependimento do/a “candidato/a” depois da cirurgia.
Seguindo uma tendência internacional defendida nos documentos oficiais, no Projeto
Transexualismo o tempo mínimo exigido é de dois anos. No entanto, ao final desse tempo,
não significa que o/a “candidato” estará automaticamente apto à cirurgia. A equipe médica
poderá concluir que ele/a não é um/a transexual.
A terapia hormonal
          Todo/a “candidato/a” deve tomar os hormônios apropriados para modificar as
características secundárias do seu corpo.  São administrados androgênios para os transexuais
masculinos e progesterona ou estrogênio para as transexuais femininas, em quantidades
variadas.
 Para alguns especialistas, o/a “candidato” só deve começar a tomar os hormônios
depois de algum tempo freqüentando as sessões de psicoterapia. No Projeto Transexualismo,
depois de realizados os exames gerais, inicia-se imediatamente a terapia hormonal.
O teste de vida real
Consiste na obrigatoriedade de o candidato usar, durante todo o dia, as roupas comuns
ao gênero identificado
17
. O teste de vida real começa já na admissão do/a “candidato” no
Programa.
Os testes de personalidade
Têm como objetivo verificar se o/a “candidato” não sofre de nenhum tipo de
“Transtorno Específico da Personalidade”
18
. Os testes psicológicos mais utilizados são o
HTP, o MMPI, o Haven e o Rorscharch.
                                                             
1 6
 “Redesignificação” é o nome adotado oficialmente pela HBIGDA para as intervenções cirúrgicas nos/as
transexuais. Também é usual na esfera médica a expressão “mudança de sexo”. Aqui será utilizada e expressão
“transgenitalização” ou simplesmente “cirurgia corretiva” para essas intervenções por considerarmos que as
reivindicações dos/as transexuais se fundamentam na reversão de uma assignação sexual imposta.
1 7
 Entendemos por “gênero identificado” aquele  que o/a transexual reivindica o reconhecimento e por “gênero
atribuído” o que lhe foi imposto quando nasceu e que está referenciado nas genitálias.
1 8
 Os “transtornos de personalidade” compreendem vários estados e tipos de comportamento. Cada um deles
recebe um código específico na classificação aceita internacionalmente (Código Internacional de Doenças -10) e
estão agrupados em: transtornos específicos da personalidade (código F60), transtornos mistos da personalidade
(F61), transtornos dos hábitos e dos impulsos (F63), transtornos de personalidade da identidade sexual (F64), no
qual está classificado o “transexualismo”, identificado pelo código F64.0,  transtornos de personalidade da
preferência sexual (F65), neurose de compensação (F68). No DSM, outro documento da APA, aparecem  as
“Normas de Tratamento para Transtornos de Identidade de Gênero” (ET), cujo propósito principal é “articular 8
Os exames de rotina
Consiste em um conjunto de exames que o/a “candidato/a” se submete.
Hemograma, colesterol total, triglicérides, glicemia, TGI-TGO, Bilirrubinas, VDRL,
HIV, HbsAG, Sorologia para vírus da Hepartite C, imunofluorencência para T. a, PRL,
Testosterona  livre, FSH, EAS, contagem de colônias (urina e antibiograma), ECG, RX de
tórax, cariótipo, RX sela túrcica, ultra-sonografia do testículo e próstata/pélvico ou
endovaginal, Ultra-sonografia de abdômen superior.
A cirurgia de transgenitalizacão
Nos transexuais masculinos, as cirurgias consistem na histerectomia, mastectomia e na
construção do pênis. A histerectomia é a retirada do aparelho reprodutor feminino e a
mastectomia, a retirada dos seios. A construção pênis é a parte mais complexa, uma vez que
as técnicas cirúrgicas ainda são precárias. Vários músculos já foram testados como matériasprimas para o pênis. Os tecidos mais utilizados são os músculos do antebraço, da panturrilha,
da parte interna da coxa ou do abdômen. Uma das técnicas utilizadas para  a construção do
escroto é a expansão dos grandes lábios, para enxertar expansores tissulares, ou implantar
silicone.
Entre os problemas mais comuns que ocorrem nesse tipo de cirurgia estão a
incontinência urinária, necrose do neofalo, podendo chegar à perda ou à morte do pênis,
cicatrizes no local doador e urina residual. De uma forma geral, os transexuais masculinos
fazem a opção pelas duas primeiras cirurgias.
Nas transexuais femininas, a cirurgia consiste na produção da vagina e de plásticas
para produção dos pequenos e grandes lábios. A produção da vagina é realizada mediante o
aproveitamento dos tecidos externos do pênis para revestir as paredes da nova vagina. Os
tecidos selecionados do escroto são usados para os grandes e pequenos lábios. O clitóris é
feito a partir de um pedaço da glande. Depois da cirurgia, deve-se usar um vibrador por algum
tempo, para evitar o estreitamento ou fechamento da nova vagina.                                                                                          
Depois de feitas as cirurgias, inicia-se o processo judicial para mudança dos
documentos.
Mesmo diante de todo o rigor dos procedimentos sempre paira a dúvida: será que ele/a
é um transexual? Diante da transexualidade, a suposta objetividade dos exames clínicos não
fazem nenhuma diferença. Nessa experiência, o saber médico não pode justificar os
“transtornos” por nenhuma disfunção biológica, como aparentemente se argumenta com o
caso dos intersexos que devem se submeter a cirurgias para retirar-lhes a ambigüidade estética
dos genitais, conformando-os às normas estéticas corporais dos gêneros.
Nos casos dos intersexos, a “natureza” disfarça-se em ambigüidade, sendo a função da
ciência encontrar o “verdadeiro sexo”
19
 , conforme formulou o anatomista Tardieu (in
Foucault, 1985a).  Com a experiência transexual, a ciência teve que construir outros
dispositivos para defini-la, classificá-la, construí-la.
                                                                                                                                                                                                       
o consenso internacional das organizações profissionais sobre o manejo psiquiátrico, psicológico, médico e
cirúrgico dos transtornos de identidade de gênero.” Tanto no DSM quanto no CID nota-se a pressuposição de
que  há um conjunto de indicadores universais que caracterizam as/os transexuais. Para informações sobre os
“Transtornos de Personalidade” e os testes de personalidade, ver: http://www.psiweb.med.br/cid/persocid.html
1 9
 A idéia dos “disfarces da natureza” é do anatomista que analisou o caso de Herculine Barbin, Tardieu (in
Foucault, 1985a ).9
Em última instância, o que contribuirá para a formação de um parecer médico sobre os
níveis de feminilidade e masculinidade presente nos demandantes, são as normas de gênero.
Serão elas que estarão sendo citadas, em séries de efeitos discursivos que se vinculam às
normas, quando se julga ao final um processo de um/a “candidato/a”.
5. Fragmentos das rotinas dos/as “candidatos/as” no hospital
Ser “candidato/a” significa desempenhar com sucesso as provas que lhe são atribuídas
em suas visitas semanais ao hospital. Mas quem tem o poder de decidir se o/a “candidato/a”
foi aprovado ou não? O que está em jogo nestas provas? Os/as transexuais não demoram
muito para compreender o significado de ser um/a “candidato/a”.
 Estas idéias são interiorizadas pelos/as demandantes, que passam a estruturar suas
ações a partir dessas definições. Conforme fazia questão de repetir um dos membros da
equipe médica a cada atraso de um dos candidatos para um compromisso no hospital, “fazer
parte do projeto tem um preço. Quem não estiver disposto a pagá-lo,  está fora.”
O objetivo desta segunda parte é reconstruir fragmentos da vida  do/a transexual no
hospital, tentando visibilizar, através de suas narrativas, como as obrigações estipuladas nos
protolocos são vivenciadas. São fragmentos articulados em torno de jogos e estratégias que se
estabelecem neste espaço.
5.1 Ingressar no Projeto: o medo
Quando ficam sabendo da existência do projeto e fazem a primeira consulta com a
coordenadora, alguns transexuais relataram que sentiram uma mistura de esperança e medo;
esperança por vislumbrarem a possibilidade de ficarem “livres” de partes do corpo
consideradas responsáveis pela rejeição que sentem de si mesmos e medo de não serem
aceitos no Projeto. É interessante observar que Pedro e Kátia prepararam-se da mesma forma
para receber uma resposta negativa.
Pedro: Agora, eu vou te falar, eu estava decidido a me  suicidar. A doutora falou assim: “tal
dia você vem aqui, que eu quero te examinar”. Era o dia da resposta sobre a operação. Isso
foi no comecinho, quando eu entrei no projeto. Aí eu pensei muito sobre isso; aí eu decidi que
se a resposta fosse não, eu tinha meus planos:  já tinha subido lá no terceiro andar. Cheguei
numa janela, olhei para baixo, pensei comigo: “se eu cair daqui, se eu me jogar daqui de
cabeça, eu acho que não sobra nada não, acho que morro”. Bom, é isso mesmo, se a resposta
fosse não, eu ia fazer isso, ia mesmo; tinha decidido, eu avisei aqui em casa. Falei assim: “ó,
se eu não chegar aqui...”.[a mãe interrompe a entrevista: “Isto é falta de Deus no coração e
falta de fé. Bate na boca.”] Eu sei,  mãe,  que eu não tinha que pensar assim, mas é que a
revolta é demais. Mas só uma pessoa que vive do meu jeito, com o corpo que eu tenho, com a
cabeça que eu tenho... não dá, não tem condições de viver.
Katia: Dessa agonia toda, desses exames, dessas coisas todas, e do medo deles falarem que
não ia operar, amolei uma faca bem amolada, né? E vim para o hospital no dia que ela ia
falar se eu ia fazer parte da equipe ou não. Aí amolei a faca bem amolada, pus na bolsa e
trouxe. Pensei assim: “se ela falar que eu não posso operar, eu entro no banheiro e meto a
faca nisso. Tiro essa porcaria de qualquer jeito”. De qualquer jeito eu queria tirar. E antes
disso lá no serviço, né? Eu sempre entrava no banheiro e tentava, chegava a machucar
todinho com a unha, assim, esfolava ele todinho com a unha, tem o sinal nele, d’eu apertar a
unha e machucar. 10
Entretanto, pode-se notar que há uma diferença considerável entre as falas de Pedro e
Kátia. Enquanto para ele uma resposta negativa significaria o fim da vida, Kátia, quando
decidiu que faria ela mesma a cirurgia no hospital, preparou essa estratégia norteada pelo seu
desejo de viver.  Provavelmente seria uma forma de mostrar à equipe médica que ela tinha
certeza do seu desejo de realizar a cirurgia e, ao fazê-lo no hospital, garantiria o atendimento.
Mas, para ambos, seria o hospital o espaço da realização de seus infortúnios.
Para Carla e Manuela, além do receio em saber se fariam parte ou não do Projeto, o
que é interpretado por muitos como uma garantia da realização da cirurgia, há a ansiedade
para começar a terapia hormonal.
Carla: Se Deus quiser, eu vou começar a tomar os hormônios. Eu já fiz todos os exames e
hoje à tarde vou encontrar com a doutora. Acho que com os hormônios eu vou ficar bem
feminina. Será que os seios crescem muito? E os pêlos? Eu quase não tenho pêlos, mas dá
muito trabalho tirar todo dia com pinça.  Ah, não vejo a hora... Meu sonho é ter seios, porque
eu não tenho nada, isso aqui [aponta para os seios] é um algodãozinho que eu ponho para dar
um pouco de volume.
Manuela: Vou buscar os exames hoje. É... eu tenho um pouco de medo desses exames darem
algum problema e eu não poder operar. Se pelo menos eu começasse a tomar logo esses
hormônios. Será que ainda vai demorar muito para começar?
Esses relatos expõem expectativas e desejos. Uma vez aceitos no Projeto,
desencadear-se-á uma nova etapa na relação com a equipe. A partir daí serão “candidatos/as”.
5.2 Os exames
Depois da primeira entrevista, têm início os exames, a psicoterapia e os testes e, de
fato, estabelece-se uma rotina.
Pedro: Fiz tantos, tantos exames. Nossa, que coisa horrível! E fora outros lá da cabeça que
me colocou dentro de um tubo lá, um troço lá e me aplicou um negócio aqui, não sei aonde,
aqui assim [aponta para garganta]. Meu Deus do céu, onde tinha buraco, assim, parece que
estava saindo fogo. Uma das médicas ficava me perguntando: “você nunca bateu a cabeça?”
Esses exames cansam, cansam demais. Às vezes  eu cheguei a pensar em desistir. Eu achava
que o tempo era muito, sabe? Se eu tivesse dinheiro, eu acho que já teria feito a cirurgia. Eu
acho não, teria, se tivesse condições teria feito.
A médica que perguntara para Pedro se ele havia batido a cabeça,  em outra ocasião
voltou a perguntar para sua mãe a mesma coisa. O fato de averiguar se ele “bateu a cabeça”  é
uma outra forma de se questionar a sanidade mental de Pedro. É como se buscasse alguma
explicação aceitável para uma “mulher biologicamente sadia”  solicitar uma intervenção no
corpo. A vontade de Pedro de desistir  justifica-se tanto pela quantidade de testes e exames
quanto, e principalmente, pelas situações às quais estes exames o colocavam.
Para Andréia, ir ao hospital significava deslocar-s e   de um Estado para outro e em
decorrência disso concentrar todos os exames, testes, fonoterapia e psicoterapia em dois dias.
Andréia: Eu acho terrível. É um período, como se fosse um período de provas.  Hoje mesmo,
vim com apenas R$3,50; o dinheiro do coletivo. Eu sei que não vou ter dinheiro para comer,
nem tomar leite.  Agora, você imagina e se depois de todo esse sacrifício eles dizem que eu 11
não vou fazer a cirurgia?  Deus me livre, eu morro! Porque não é uma coisa que é só minha,
como se diz, eu quero, minha família tem expectativa, os meus amigos, colegas de trabalho.
Olha, há todo um contingente de pessoas com essa expectativa.
As dificuldades financeiras de Andréia são, com pequenas variações, semelhantes às
de todos os/as “candidatos/as” freqüentadores do Projeto.
5.3 Os testes
Em determinado período, iniciam-se os testes de personalidade. Não há uma rigidez
para o início de sua aplicação. Alguns que estavam há mais de dois anos no Projeto
realizavam os  testes ao mesmo tempo que outros quase recém-chegados.
O/a transexual sabe que deve desempenhar bem essa etapa de provas e, quando isto
não ocorre produz-se um sentimento de insegurança.
Pedro: Teve um teste lá que eu não consegui passar nele, porque eu tava muito perturbado
com essa menina que tá lá no hospital [refere-se a uma amiga internada]. Quando eu fiquei
sabendo, eu fiquei muito, assim... Então, eu não tava em condições de fazer o teste, fiz assim
mesmo, porque achei que era uma obrigação minha. Não me saí bem no teste. Então, ela
falou para mim que uma candidata lá passou muito bem nesse teste. Então, isso me grilou,
fiquei nervoso com isso. Falei: “você sempre tem que me comparar com essa pessoa, que
essa pessoa é melhor que eu nisso, que essa pessoa...Eu queria que eles  [refere-se aos
membros da equipe médica] fossem mais amigos  meus. Sabe, para eles  é muito fácil, né?
Ficam sentadas em suas cadeiras, só ouvindo. Tem hora que me dá um nervoso.
Pode-se notar a interiorização da idéia de “candidato” atuando na subjetividade de
Pedro quando afirma que se sentiu triste por não conseguir desempenhar com êxito uma das
provas. O inverso, o sentimento de felicidade, também pode ser interpretado como um
indicador dessa interiorização e da leitura que fazem de sua relação com a equipe médica.
Pedro: Outro teste que eu fiz foi com uma moça; para falar a verdade, eu nem sei bem a
profissão dela. Só sei que é assim: têm umas, umas pranchetas; aí têm tipo umas pinturas lá.
Eu já passei por este teste também. Gostei muito deste teste, passei nele.  Sei que têm umas
pinturas lá que a gente tem que olhar de um lado para outro. Ela grava, ela marca, ela anota,
tudo que eu falava, ela anotava, tudo, tudo, qualquer palavra. Ela falou: “ Pedro, a partir de
agora eu vou anotar tudo e vou gravar tudo”. Então eu tinha que ver aquela pintura e
imaginar um desenho, qualquer coisa, qualquer coisa que eu imaginasse tinha que falar para
ela. Eu gostei muito deste teste. Ela disse que eu passei neste teste.
A sensação de “me saí bem nos testes” era comum. Algumas vezes, depois de fazer os
testes, a alegria do/a “candidato/a” contrastava com a posição de quem os havia aplicado. Não
era raro escutar comentários de membros da equipe: “O Rochard dele apontou uma
personalidade ambígua. E do outro, uma personalidade borderline”; “O MMPI revelou um
QI abaixo da média”. Isso leva à conclusão de que, muito comumente o que era interpretado
como êxito pelos/as “candidatos/as”, não correspondia ao diagnóstico final de quem os
aplicou.
5.4 Os protocolos invisíveis
              As obrigatoriedades iam além daquelas explicitadas no protocolo. Havia também o
“protocolo invisível”, efetivado nos comentários, nos olhares e nas censuras dos membros da 12
equipe e de outros funcionários do hospital que, pouco a pouco, produziam nos demandantes
a necessidade de articularem estratégias de jogo para conseguirem se movimentar nesse
ambiente.
Na rotina de exames o/a transexual passa por vários ambulatórios. Uma das cenas
descritas como a mais corriqueira acontecia quando estavam esperando para serem atendidos
e “uma mulher, lá no fim do corredor, chama gritando aquele nome que odeio [referência ao
nome próprio de batismo]. Nossa, parece que o chão abre.”
Pedro: Antes, tava em um corredor com um tantão de gente esperando para ser atendido. Aí
uma enfermeira chegava na porta e falava o nome, aí todo mundo olhava para mim e eu
escutava os comentários “uai, um homem com nome de mulher? Coisa estranha.”
 “O nome”  que ele não revelou no decorrer dos nossos vários encontros,  “o nome”
sem nome, guardado em segredo. Dizê-lo, pronunciá-lo seria recuperar sua condição
feminina. O nome próprio aqui funciona como uma interpelação que o recoloca, que
ressuscita a posição de gênero da qual luta para sair. Como seria seu nome de batismo?
Maria? Clara? Joana? Ao longo das entrevistas, poucos revelaram seus nomes de batismo. No
hospital, no entanto, a cena de um/a enfermeiro/a gritando “aquele nome, o outro nome”, era
muito freqüente. Muitas vezes presenciei cenas como esta descrita por Pedro.
Os olhares inquisidores das dezenas de pacientes amontoados em longos corredores do
hospital, sem compreenderem o que estava acontecendo ali,  “um homem, com nome de
mulher?”, provocavam um efeito corporal quase mecânico no/a transexual que acelerava o
passo e abaixava a cabeça.  O que seria “uma coisa estranha?” Nesse momento, Pedro era a
própria  “coisa entranha”, aquilo que não tinha nome, uma coisa, inclassificável, nem
homem, nem mulher, a própria materialização do grotesco.
Ser identificado publicamente pelo nome que o/a posiciona no gênero rejeitado era
uma forma resignificada de atualizar os insultos de  “veado”,  “sapatão”,  “macho-fêmea”
que, ao longo de suas vidas, os haviam colocado à margem.  Talvez o “protocolo invisível”, o
não dito, não explicitado, seja o mais importante e mais difícil de negociar.
Entre os relatos de insultos, Pedro destacou outro que lhe marcou.
Pedro: Quando fui visitar  um dos doutores, ele fez uma piadinha que eu não gostei. Ele me
colocou, depois de me examinar e de saber qual era meu caso, ele me colocou numa cadeira
lá, no meio de um monte de médicos e médicas novinhas, como é que fala, que está
começando (refere-se aos residentes)? Acho que tinha uns dez, tudo em volta de mim, aquelas
mocinhas curiosas, aqueles rapazinhos e eu lá no meio, parecendo um saco de pancada, lá no
meio, quietinho. Aí, o doutor falou assim: “o caso dela é de mulher querendo ser homem, mas
transformar um Joãozinho em Maria é bem mais fácil; agora uma Maria em Joãozinho, é
bem mais complicado.” E eu só ouvindo. Aí uma falava uma coisa, a outra falava outra; aí
uma das médicas falou: “desce as calças”. Olhei para ele e falei, “doutor,  eu não vou descer
as calças não”. Aí ele conversou, conversou e pediu, “tira a calça aí”. Falei: “sinto muito, o
senhor já me viu, já sabe qual é meu caso, conhece meu corpo, eu não vou tirar”. Aí uma
mocinha veio para o meu lado, falou assim: “mas a gente quer te ajudar, a gente não quer
ficar curiando, a gente não está aqui para curiar, a  gente quer ajudar”. Falei mesmo assim:
“eu não vou tirar.” E não tirei. Ele pediu umas três vezes para tirar, eu não quis tirar, eu não
tirei. Eu sentado e aquele monte de gente em volta de mim... parecendo que eu era não sei o
quê ali... Todo mundo ali me curiando, me olhando de cima para baixo, e entortava a cabeça
assim. Eu me senti um animal”.
Se o nome próprio de batismo pronunciado publicamente produz uma descontinuidade 13
entre este nome e as performances de gênero, expor as genitálias publicamente gera a
espetacularização do diferente. Aqui se vê um dos mecanismos de funcionamento do hospital
mais corriqueiro: exerce-se a autoridade e o poder a partir da infantilização do/a
“candidato/a”. As rotinas e as obrigações às quais devem se submeter, justificam-se em nome
do seu bem-estar, retirando, assim, a capacidade de decisão e o poder do/a transexual sobre
seus corpos e suas ações. No entanto, há um limite,  que não sabemos definir com precisão,
para se aceitar o exercício desse poder. Quando Pedro não baixa a roupa, esse limite explicitase.
Poucas horas antes de realizar a cirurgia de transgenitalização, Kátia lembra da postura
do enfermeiro que fazia questão de chamá-la pelo nome masculino, o que lhe causou muito
constrangimento.
Kátia: Foi horrível. Eu ali na enfermaria com as outras mulheres e ele me chamando pelo
meu nome masculino. Três vezes eu pedi, mas ele fazia de conta que não me escutava e
repetia. Minha pressão subiu tanto. Eu fique com medo de não poder me operar.
Depois da cirurgia, aconteceu um outro episódio que lhe provocou uma infecção,
deixando-a por mais de 25 dias internada.
 Katia: Eu tive que ficar vários dias no hospital  porque deu uma infecção, por meu estado
emocional e por uma coisa que aconteceu no hospital. Um rapaz me ameaçou dentro do
hospital com um canivete. Tinha um rapaz moreno na enfermaria, ficou me chamando de ele,
por eu ter pêlos no rosto.  Aí esse rapaz me apontava para o índio e perguntava: “você tem
coragem de namorar com ele?” E falava desse jeito, me chamando de ele.  Aí eu falei assim:
"Se eu fosse ele, eu não estaria numa enfermaria de mulher". Isso numa segunda, quando foi
na terça-feira ele abriu um canivete na porta da minha enfermaria e falou: "aqui, oh, para
você". Eu estava fraca. Eu fui agredida muitos anos atrás, quando tinha 18 anos, por um
vereador da minha cidade. Ele me cortou toda de canivete. Tenho várias cicatrizes de
canivete [mostra as cicatrizes nas pernas, nas cochas e nos braços]. E eu fui toda cortada e
num tive nenhum trauma, mas quando ele apontou o canivete e mostrou que era para mim, eu
lembrei do que me aconteceu. Aí eu chamei a enfermeira-chefe e ela me disse que era
frescura minha, ele simplesmente estava querendo descascar um cajá com o canivete. Mas
por que não abriu esse canivete na porta da enfermaria dele?
Os fios que amarram os fragmentos que compõem os “protocolos invisíveis” são os
insultos, os olhares que estão presentes nas enfermarias, nos ambulatórios e que a cada
momento lembram ao/à transexual sua condição de diferente, de “coisa estranha.”
5.5 Estratégias de negociação
Uma primeira leitura poderia sugerir que se está diante de um quadro de polarização
radical: de um lado o poder médico, materializado na equipe, e de outro, os/as “candidatos/as”
oprimidos, sem capacidade de resposta e de reação, vítimas de  um poder que decide
isoladamente os rumos de suas vidas. As condições objetivas para se chegar a esta conclusão
parecem favoráveis.  Nas trajetórias de vida, pode-se notar que há um viés de classe social
constante: todos são oriundos de camadas sociais excluídas. O fato de vivenciarem a
experiência transexual, ou seja, de estarem fora das normas de gênero, torna estas pessoas
duplamente excluídas. Muitos afirmaram: “se eu tivesse dinheiro, não suportaria isto aqui”.
A relação que se estabelece com o hospital, de forma geral, e com a equipe, em
especial, é a de favor. A noção de direito e de cidadania é uma abstração que não encontra 14
nenhum respaldo na efetivação das micro relações que se dão no âmbito do hospital. Frases
como:  “Eu tenho que dar graças à Deus. Tenho que agradecer”, são freqüentes nas
conversas dos/as transexuais com membros da equipe. Mas este é um aspecto desta relação
que tende a conduzir ao caminho da essencialização das relações de poder, mediante uma
análise hierárquica e dicotomizada, a qual o saber-poder médico não deixa outra alternativa
aos/as “candidatos/as” que não seja aceitar passivamente suas ordens e imposições.
            Seguindo Foucault (1985), o poder não é coisa que alguém tem em detrimento do
outro.
 Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a
multiplicidade de correlações de força imanentes do domínio
onde se exercem e constitutivas de sua organização: jogo que,
através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma,
reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força
encontram umas nas outras, formando cadeias, ou sistemas, ou,
ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam, entre
si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral
ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais,
na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (Foucault,
1985:89)
Por tal abordagem, o poder movimenta-se de acordo com as disputas e resistências que
se instauram dentro de determinados campos. Ninguém tem o poder definitivamente.  As
correlações de força induzem a “estados de poder”, com suas redes produtivas que atravessam
o corpo social. Não existe uma única direção para a atuação do poder. Ele é descontínuo,
fragmentado e, muitas vezes, o relacional encontra-se disfarçado.
Trata-se, então, de encontrar os mecanismos específicos da relação entre o saber
médico e os/as transexuais que fazem parte do Projeto, apontando como eles/as movimentamse, tentando ocupar posições que lhes sejam favoráveis neste campo social. A “capacidade
potencial” do saber médico em decidir os rumos das vidas desses sujeitos se esvanece quando
se observa os jogos e as estratégias de negociação implícitas que perpassam o cotidiano do/a
“candidato/a” no hospital.
Alguns dos mecanismos utilizados pelos/as transexuais para se posicionar nesta
relação são: auto construir-se enquanto vítimas, o silêncio e a essencialização de suas
identidades por meio de uma narrativa que aponta para um “desde sempre me senti assim” e o
“mentir”. Cada uma dessas estratégias desencadeia recursos discursivos específicos, gerando
efeitos particulares. Interessa, aqui, principalmente a estratégia discursiva considerada como
“mentira”
Quando chegam ao hospital, os/as “candidatos/as” têm em suas biografias relatos de
várias estratégias de simulação que lhes possibilitam sobreviver nos campos sociais
fundamentados na heteronormatividade, sendo o hospital mais um desses espaços. Não nos
interessa aqui pensar “a mentira” como um dado, mas localizá-la enquanto uma estratégia
discursiva. Desta forma, é necessário relatar algumas experiências de simulação fora do
hospital para depois voltar a esse espaço com o problema já contextualizado, evitando, assim,
que se incorra no erro de congelar as ações desses sujeitos a este campo.
5.6 A formação de estratégias discursivas
20
                                                             
2 0
 Sobre “formações discursivas”, ver Foucault (1985, 1996), Orlandi (2000), Pêcheaux (1997).15
O medo de serem descobertos por familiares, amigos, professores, o medo de não
conseguirem um emprego ou de manterem uma relação amorosa propicia que se criem e se
desenvolvam nos/as transexuais mecanismos de sobrevivência psíquica e social. Uma das
alternativas que Kátia encontrou para explicar aos seus namorados sua situação foi definir-se
como “hermafrodita”.
Kátia: Eu dizia que nasci com os dois sexos, que era hermafrodita. Mesmo depois que fiquei
sabendo que existiam transexuais, eu continuei falando isto, porque é mais fácil de  aceitarem
quando a gente diz que tem um problema biológico.
Para Helena, também era mais fácil definir-se hermafrodita.
Helena:  Aí eu fui explicar para minha patroa... para começar, eu   falei que eu era
hermafrodita, para não causar tanto  impacto. Só que depois eu conversei com a mãe do nenê
que eu tomo conta. Ela entendeu e até brigou comigo porque que eu não falei a verdade
quando eu tinha chegado. Aí eu fui explicar para ela a diferença. Aí ela explicou para o
esposo dela e não teve problema nenhum. Mas para mim é mais fácil dizer que sou
hermafrodita, sem dúvida.
A utilização de uma ancoragem discursiva baseada no biológico, significa uma forma
de negociar com as normas de gênero que legitimam como normais as práticas referenciadas
no discurso da determinação natural das condutas.
Para Vitória, sua voz aguda e a ausência de pêlos visíveis contribuíam para não ser
questionada quando afirmava que era mulher.
Vitória: Para meus namorados, eu sempre disse que era mulher. Mesmo para ele [refere-se a
seu atual companheiro] eu escondi durante meses. Eu lembro como se fosse hoje do primeiro
dia. Ele foi lá em casa me buscar. Aí ele passou lá em casa, ficou conversando, aí ele disse:
"Vamos conversar lá fora?” Na hora que a gente atravessou o portão, que eu fechei o portão,
ele me pegou pelo meio da minha cintura e me deu um beijo. Eu pensei assim: “Beleza!!
Passei no teste de novo.” Aí eu pensava, morrendo de rir aqui dentro de mim: "caipira, bobo.
Se ele soubesse que eu tenho no meio das pernas a mesma coisa que ele." Aí eu fui lá e dei
um beijo nele. Eu sempre dizia que eu era mulher. Inclusive lá no meu trabalho, ninguém faz
nem idéia. Quando me pediram os documentos, eu disse: “Não, eu quero assinar minha
carteira quando tiver uma profissão universitária”. Eu consegui com um amigo uma carteira
de identidade com nome feminino, então...Ninguém desconfia, porque o que denuncia é a voz
e minha voz é totalmente feminina.
O desejo em ser aceita nas igrejas por onde passou fazia com que Patrícia afirmasse
que já era cirurgiada.
Patrícia: Eu estou indo às igrejas, aí eu já falo de cara: "Oh, sou operada, sou mulher, está
aqui no documento..." Eu estou mentindo, mas se eu não fizer isso eles vão começar a dizer:
"Ah, nós vamos fazer uma terapia com você, aí você logo vai ver que vai mudar de idéia, vai
tirar essas roupas e vai virar homem". Então, eu falo que já sou operada para eles não
pegarem no meu pé. Porque se já fez a cirurgia não tem mais jeito.
Sabendo que não poderia convencer os membros da igreja da necessidade de realizar a
cirurgia, Patrícia encontrou no argumento da irreversibilidade, uma forma de transitar pelas
igrejas sem ter de justificar a todo o momento seus sentimentos e desejos.16
Nas relações sexuais também se nota estratégias particulares de negociação, mediante
a utilização de técnicas para que o/a parceiro/a não descubra suas genitálias.
Kátia: Eu tenho muito medo que descubra a realidade. Porque todos os namorados que eu
tive sabiam que eu era diferente, que era hermafrodita, mas não sabiam que eu tinha um
pênis. Eu nunca deixei e nunca vou deixar tocar. Eu tenho pavor dessa parte de baixo aí. Eu
sempre falava assim, que eu tinha um problema sexual que não podia fazer sexo na vagina,
que eu tinha a vagina tampada. Era isso que eu dizia.Teve um que eu namorei mais de três
anos. Nunca descobriu. Geralmente eu tinha relações no escuro.  Colocava uma toalhinha
aqui [assinala para o pênis]. A toalhinha sempre estava lá e nunca deixei tocar. Mas eu tinha
medo, sabe, medo de eles quererem tocar.  Ele só ficava por trás e aí eu segurava a
toalhinha, porque se ficasse em cima tinha perigo dela escapulir. Então nunca deixei tocar,
nunca deixei ver.
Pedro teve várias relações amorosas e nenhuma de suas namoradas descobriu nada,
com exceção de uma.
Pedro: Depois de um ano que morávamos juntos  [enquanto fala mostra a foto de sua exnamorada], eu falei assim: “olha, eu tenho uma coisa muito séria para te falar”. Aí ela ficou
assustada. Porque eu não era desse tipo de coisa, tudo ela sabia. Aí ela sentou e eu disse:
“quero te falar... meu nome é esse (Falei para ela o nome feminino) e meu corpo é do mesmo
jeito do seu.” Ela falou: “ você está mentindo para mim”. Falei assim: “você sabe disso
daqui [aponta para os seios], num sabe?” “Sei, mas você falou que era aquele caso, aquele
negócio de menino quando está na adolescência, começa a fazer aquela coisa, aí nasce”. Aí
falei assim: “não, eu menti. Então isso daqui é igualzinho ao seu. Eu tenho...” Eu falei e ela
começou a chorar. Falou assim: “você está mentindo para mim, isso é brincadeira, você está
brincando comigo”. Falei: “não é brincadeira não, é sério. Por que eu sou estranho desse
jeito? Por que a gente nunca fica como um casal normal? No dia, na luz, essas coisas, heim?
A gente sempre tem que ficar no escuro, essas coisas?” Aí ela começou a olhar para mim
assim, pensando... Aí falou para mim: “você está mentindo, eu não quero mais saber disso,
não me fala mais sobre isso”. Falei assim: “olha, eu estou te contando porque eu acho que
eu te amo de verdade”.Falei desse jeito porque eu não tinha bem certeza que amava ainda.
“Então, eu não quero mais mentir”. “A minha parte eu fiz, você não quer aceitar, problema
seu”.Aí, depois de uns, dois, três meses ela sentou comigo e perguntou se era realmente
verdade e eu disse que sim.
Quando chegam ao hospital, já carregam em suas biografias estratégias, algumas vezes
consolidadas, para se moverem nos campos sociais e será com estas “armas” que irão se
inserir no campo do poder médico. Stoller (apud, King, 1998), depois de anos atendendo a
pessoas que vinham ao seu consultório solicitando um diagnóstico de transexualidade,
concluiu: “eles mentem”. Em uma reunião do GIGT em Valência
21
, quando se comentou tal
conclusão de Stoller, houve uma gargalhada generalizada. Depois, uma das militantes
afirmou: “nós somos muito mentirosos, falamos o que eles querem escutar”.
O relato destas histórias mostra que, ao chegarem ao hospital, os/as “candidatos/as”
têm  uma trajetória que os/as possibilita construir narrativas adequadas às expectativas da
equipe. Para chegar a essa conclusão, foi necessário atentar para a movimentação que
acontecia, por exemplo, depois de uma sessão de psicoterapia ou aos comentários que
                                                             
2 1
 O Grupo de Identidade de Gênero e Transexualidade representa os/as transexuais valencianos/Espanha.
Realizei parte do trabalho de campo para a tese de doutorado neste coletivo (de setembro de 2001 a julho de
2003).17
realizavam entre eles/as sobre algum teste.  Este é um tipo de informação que não está
facilmente disponível.
Diante da pergunta:  “E aí, que teste você fez hoje?”, vinha a resposta e o comentário:
“Nossa, hoje eu comecei aquele teste que tem um tantão de perguntas e peguinhas. Mas eu
sou mais esperta, tenho muito cuidado quando respondo.”
A esse comentário, iniciou-se uma discussão sobre os testes e quem ainda não os tinha
realizado queria informações sobre as perguntas.
Às vezes vem uma pergunta, aí você tem que ficar de olho, de orelha em pé, porque se não
passa de três, já vem outra quase do mesmo jeito, aí você tem que ser esperto para falar o
mesmo, e eu falo o mesmo.
Para outras “candidatas”, o que mais incomodava eram as sessões de psicoterapia.
Aí vêm aqueles comentários: “é importante você falar do seu pai”. E pensava: “eu lá quero
falar do meu pai, ele está morto e enterrado!” Mas não, tenho que falar, porque senão ela
fica com aquele papelzinho tomando nota. Eu não sei o que está colocando ali. Aí fica pondo
palavras na minha boca. Que raiva! Aí eu falo o que ela quer ouvir e ponto.
Eu chego para fazer a terapia, ela fala: “você está triste?”, porque ela gosta de atacar a
pessoa para ver a reação. Uai, se ela está falando que estou triste, deixe-a pensar que eu
estou triste. Eu não estou triste, estou feliz, de bem com a vida, mas fico calada, só balanço a
cabeça.
Para muitos, as sessões de psicoterapia são “chatas”. Não existe nenhuma alternativa
para o/a transexual; tem de fazer psicoterapia com o especialista indicado pelo hospital. Para a
psicanalista Collete Chiland (1999), que tem sua clínica voltada para atender principalmente
crianças “afeminadas”, segundo terminologia da autora, e que defende a obrigatoriedade  do
tempo de psicoterapia, é impossível se ter um bom trabalho quando o/a “candidato” não tem
uma identificação com o psicoterapeuta, uma vez que compromete a aliança terapêutica
formada pelos momentos de transferência e contra-transferência.
Para a posição oficial, os protocolos têm a função de possibilitar ao/a “candidato/a”
estar seguro sobre a decisão de realizar uma cirurgia irreversível. No entanto, pode-se afirmar
que servem para que os membros da equipe acumulem um “conjunto de evidências” que
possibilita a produção de pareceres.
22
A busca por “acumular evidências”, por parte dos membros da equipe médica, não é
algo que ocorra objetivamente. Em se tratando de transexualidade, nada é objetivo. Se, como
afirma Butler (1993, 1997, 1999), o sexo foi desde sempre gênero, no caso da transexualidade
os efeitos de um regime que regula, produz e reproduz os gêneros com base na determinação
da natureza, fará com que estas verdades orientem o olhar classificador e normatizador dos
especialistas sobre os corpos daqueles sujeitos que reivindicam o direito de mudarem de
gênero e que esse reconhecimento seja total, inclusive com cirurgias corretivas nas genitálias.
                                                             
2 2
 Uma das questões pres entes nas Normas de Tratamento da Associação Americana de Psiquiatria e nas da
AHBDH é a necessidade da manutenção do controle e do poder da equipe sobre as afirmações dos “candidatos”.
No ponto  4.6.1, princípio 16,  lê -se: “ A evidência de diagnóstico para a transexualidade exige que o cientista
clínico comportamental tenha conhecimento, independentemente dos pedidos verbais do paciente, de que a
disforia, o desconforto, o sentimento de impropriedade e o desejo de se livrar  dos próprios genitais existem há
pelo menos dois anos. Esta evidência pode ser obtida por uma entrevista com um informante designado pelo
paciente (amigo ou parente) ou pelo fato de o cientista comportamental clínico conhecer profissionalmente o
paciente por um extenso período de tempo.”  (apud, Ramsey, 1998: 142)18
No dispositivo da transexualidade, nada é enunciação constatativa. Mais do que uma
fábrica de corpos dimórficos, no hospital tenta-se reorganizar as subjetividades apropriadas
para um/a “homem/mulher de verdade”. No hospital,  realiza-se um trabalho de “limpeza de
gênero”, retirando tudo que sugira ambigüidades e possa pôr em xeque um dos pilares
fundantes  das normas de gênero: o dimorfismo natural dos gêneros.
5.7 O hospital e as assepsias dos gêneros
 Ao longo do trabalho de campo, ocorreram encontros com psicólogos que muitas
vezes se perguntavam:  “às vezes aquele candidato tem um comportamento que sugere uma
homossexualidade reprimida”; “você viu como ele estava vestido? Parecia um travesti”; “eu
tive que dizer para ela: olha, você está se vestindo como uma puta.”
23
;  ou então: “nossa! Viu
como ela é uma mulher perfeita! Não tenho a menor dúvida: ela é transexual”, “não tem
dúvida: com o tempo a gente passa a reconhecer de primeira um transexual; basta ver a
forma de andar, de vestir, e a  mão. A mão é fundamental.”
Quando esses comentários são realizados diretamente para o/a “candidato/a”,  produzse um efeito prescritivo, que desencadeia no/a transexual um “ajuste” performático àquilo que
se estabelece como verdade para os gêneros e que, neste momento, o membro da equipe
representa. Como o juiz que profere a sentença “eu os declaro casados”, criando realidades,
estes atos lingüísticos, disfarçados de “comentários descritivos”, geram uma série de efeitos
regulatórios nas performances e nas subjetividades dos/as transexuais.
Conforme analisou Foucault (1985), nas sociedades modernas se confessam os
sentimentos, teoriza-se sobre a fome, inventa-se uma ciência dos corpos, das condutas, do
sexo, ao mesmo tempo em que se submete um conjunto de coisas ditas e até as silenciadas a
procedimentos de controle, de seleção e de circulação, que atuam como polícia do discurso.
 Muitas vezes, essas evocações sobre a forma de os/as transexuais se vestirem,
andarem e falarem, ou seja, sobre uma determinada “estilística corporal” (Butler, 1999, 2001),
eram produzidas já no primeiro encontro. O pouco tempo de terapia me fez concluir que os
dados disponíveis para proferir tais sentenças estavam respaldados, para sua efetivação, nas
performances de gênero que os/as transexuais atualizam. É esse olhar que se estrutura a partir
das dicotomias corporais e da binariedade para compreensão das subjetividades que estará
apontando os excessos, denunciando aquilo que lembra condutas e subjetividades não
apropriadas para um homem e uma mulher.  O tempo de vida no hospital tem outra função:
realizar a “assepsia” nas performances dos/as “candidatos/as”, cortar as paródias dos gêneros,
eliminar tudo que recorde os seres abjetos que devem ser mantidos à margem: os  gays, os
travestis e as lésbicas.
Se uma mulher de verdade é discreta na forma de maquiar-se, nos modelos das roupas,
se fala baixo e gesticula comedidamente e tem uma voz que não lembra os falsetes dos
travestis, então, há todo um conjunto de intervenções para construir um sujeito transexual que
não tenha em suas performances de gênero nenhum sinal que os cite. A coerência dos gêneros
está na ausência de ambigüidades e o olhar do especialista está ali para limpar, cortar, apontar,
assinalar os excessos, fazer o trabalho de assepsia. É o dispositivo da transexualidade em
pleno funcionamento, produzindo realidades e ritualizando-as como verdade nas sentenças
proferidas seja com julgamentos seja com olhares inquisidores dos membros da equipe
médica.
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